Parem a Máquina da Morte!!!

Comecemos este texto por uma constatação um tanto óbvia mas necessária para chegarmos aos pontos centrais que nos dispomos a tratar nas linhas mais abaixo. Vivemos, infelizmente, em um país onde a educação, quando não é pouco valorizada, é solenemente ignorada por aqueles que, no campo dos discursos políticos oficiais, deveriam cuidar de tão importante aspecto. Mas por que começar o presente texto com tão óbvia observação? A resposta pode ser encontrada numa (grave) constatação sobre nossa sociedade.

A ausência quase total de um cuidado mais especial com questões referentes à educação de nossa população (sobretudo em sua porção mais desfavorecida econômica e socialmente) fez surgir, com o passar dos anos, uma espécie de "anomalia" sociocultural entre nós, brasileiros. Ao invés de procurarmos uma autocompreenção mais profunda acerca de nossos problemas e particularidades (enquanto "Povo"), aceitamos de bom grado os "lugares-comuns" e os "estereótipos" sobre nós mesmos como fontes de explicação sobre quem ou o quê somos (nos tornando, assim, o "povo" com quem tão freqüentemente lidamos em nosso dia-a-dia).

Daí é que surgiram, gradualmente, verdadeiras "pérolas interpretativas" muito comuns em nosso "recalque social de cidadania" como "o baiano preguiçoso que odeia ouvir a palavra trabalho", "a mulher burra (porém 'gostosa'*) que subiu na vida porque 'deu' para o chefe", "o 'preto favelado' que, por ser 'preto' (e, sobretudo, favelado), não presta", "o aposentado que, devido à sua situação, 'ascende' à categoria de vagabundo", dentre vários outros. No geral, todos estes "postulados ou escaramuças sociais" acabam, no mais das vezes, cumprindo o papel de referendo e legitimação –através do senso comum –de uma série de visões simplistas que nada mais fazem do que mascarar um número tal de preconceitos que estão presentes em nossa formação enquanto seres sociais.

Uma outra nova interrogação pode, aqui, ter tomado de assalto a sua mente, leitor: por que fazer um desvio tão grande com relação à temática central do texto? Seria falta de conhecimento sobre o tema por parte de seus autores ou pura esquizofrenia dos mesmos? Interrogações à parte, insistimos no ponto de que a constatação do simplismo sociocultural que parece marcar nossa vida cotidiana é (apesar de não o parecer) muito importante para entendermos como determinadas questões referentes à prática de cidadania são abordadas e tratadas pelo conjunto geral de nossa sociedade. Dentro desse quadro, os debates acerca do problema da "segurança pública" –atual "menina-dos-olhos" das pautas jornalísticas dos grandes órgãos de mídia nacionais –não fogem a esta regra. Sobretudo quando analisamos as formas de controle e manutenção da "ordem pública" por parte dos órgãos oficiais de contenção social, ao agirem estes (pelo menos alegadamente) contra o chamado "crescimento da violência".

A "lógica" da violência empreendida por parte das forças de controle e "segurança" social (sobretudo em sua expressão policial), quando de suas incumbências relativas à manutenção da "ordem pública", não é de nenhuma forma um tipo de singularidade, ineditismo ou exceção. Considerando essa questão, o aspecto jurídico presente no alegado zelo, por parte das instâncias oficiais de poder, pela segurança pública, resguarda na verdade o que podemos considerar como sendo o "monopólio da violência" do Estado capitalista (e nos "socialistas" também).

Tal monopólio tem como uma de suas funções primordiais refratar entre a sociedade brasileira um discurso tal onde os "infratores" (sejam eles criminosos, "vadios", desempregados ou contestadores de uma ordem social que é excludente) são todos tratados como uma minoria perturbadora da "ordem pública" que se destina a proteger os "cidadãos-de-bem" –entendidos aqui como trabalhadores dóceis e pacíficos. Tal afirmação é feita, em sua composição, de mecanismos jurídicos auto-legitimadores e reafirmadores que perpassam de forma inequívoca todo o discurso de poder (seja este de Estado e/ou de governo), indo sempre do sentido legal para o político e social. Tomando por base o exposto, nos é possível configurar um tipo de mecanismo que mascara mas não esconde uma violência que é inerente ao próprio sistema econômico-social capitalista (tanto "liberal" quanto "neo-liberal").

Muitas vezes a força policial executa ao invés de prender o indivíduo infrator, registrando este fato/prática por um tipo de procedimento que, no jargão policial, é chamado de "ato de resistência" –que, segundo os códigos de conduta das corporações, é ilegal. Entretanto, a organização burocrática do Estado e a própria prática dos "profissionais de segurança pública" acabam produzindo uma cadeia de discursos abonadores de tais ações entre os representantes do sistema judiciário (delegados, promotores, juizes....). Para as forças de patrulhamento e contenção social, a semântica é muito simples e direta: basta fazer calar –por quaisquer meios –as frações de nossa sociedade "potencialmente problemáticas", que encontram-se, então, todas as soluções para a questão da "violência" (ou, como diriam alguns programas que costumam vender bugigangas pela TV, tal postura "não requer prática nem tampouco habilidade").

Se considerarmos tal prática, iremos perceber que esta nada mais é do que um dentre os vários reflexos do simplismo sociocultural cotidiano, maniqueista e preconceituoso marcante em nossa formação histórica e social sobre o qual já tivemos oportunidade de abordar mais acima. Tal conjuntura é percebida sem muito esforço ao nos depararmos com o que ocorre, por exemplo, na atual prática das "cabeças pensantes" dos órgãos policiais do estado do Rio de Janeiro, cujas nebulosas profundezas de seus inconscientes pariu em nossa sociedade uma criatura amorfa que parece caminhar a "passos de bêbado" (mas que, entretanto, é dotada de um grande e pesado porrete tatuado com insígnias federais !!) chamada "Força Tarefa Federal". Contudo, cabe aqui deixar claro que o exemplo carioca pode muito bem encontrar seus similares nos demais estados brasileiros, bastando apenas uma observação e/ou análise de conjuntura mais detida acerca de cada peculiaridade dos mesmos acerca de tal assunto.

Como se não bastasse, percebemos também que este procedimento ou modus operandi empreendido pelas forças de arbítrio não se dá apenas com os indivíduos autuados nas malhas da justiça oficial como infratores. Sob a ótica do atual aparato policial do Estado/governo, movimentos sociais reivindicatórios (e sobretudo legítimos) parecem gozar deste mesmo estatuto "criminalizado". E nesse sentido os grandes órgãos midiáticos –principalmente a grande imprensa jornalística nacional –tem prestado grande colaboração. Basta nos depararmos com a faceta de "organização" ou "quadrilha" que os grandes informativos impressos e televisionados brasileiros tem atribuído –só para citar um único exemplo –ao Movimento dos Sem Terra, onde a ação equivocada de certas "lideranças" e/ou individualidades vinculadas ao movimento são tomadas como a "via de regra" de toda uma coletividade, deixando de lado a grande diversidade humana e de idéias que a caracteriza. Em suma, parece haver, diante de tais posturas e ações, uma contínua perpetuação do "cartesianismo positivista judiciário" em nosso país. Este coloca a verdadeira vítima –que muitas vezes sofre com a opressão e exploração diárias –na situação de RÉU (ou em alguma série numerada nas gavetas de alguma repartição do Instituto Médico Legal) e os verdadeiros agressores (O Estado e as suas forças de segurança) como VÍTIMAS que se defendem (atirando primeiro), sempre na qualidade de "guardiões da sociedade".

Esse quadro ilustra, em grande parte, as facetas elitista e governista presentes nas soluções de conflitos construídas pelo Estado brasileiro e aditivadas pela exclusão –fenômeno inerente e orgânico ao próprio sistema econômico e social pelo qual nosso país é organizado. Conforme já dissemos anteriormente, tal fenômeno é de forma alguma inédito e encontra suas raízes históricas no Brasil colonial. Não é mais novidade o fato de que o nosso país foi fundado através da violência e extermínio do colonizador. Estas tem sido, aliás, as "marcas de nascença" não apenas da praxis de nosso "gerenciamento estatal" (que agora recebe o tributo adicional da chamada iniciativa privada nas demandas em prol da "manutenção da ordem"), mas, de sobremaneira, no nosso capitalismo truculento e aristocrático –mas....pensando bem....desconfiamos que essa mesma violência se expressa pintada com cores frias e mórbidas em várias partes de nosso planeta.

É possível notarmos em nosso país a presença de uma "indústria do extermínio", que intensificou seu processo fabril com a ascensão da globalização capitalista, onde a "reestruturação produtiva"** colocou uma ampla parcela da população mundial (menos, é claro, as elites) em estado de indigência por tempo indefinido. Tomando como base a última afirmação, podemos perceber mais facilmente a implementação, em nível global, de uma política de "terra-arrasada" –sobretudo nos campos político, econômico e ideológico –que caminha, digamos, "de mãos dadas". Para o sistema, tornou-se necessário em nossos dias não mais a existência de mão-de-obra sobrante (ou "exército de reserva") mas sim a sua "não existência" já que, aos olhos do capital, ela se tornou supérflua (e, só para lembrarmos, estamos falando de vidas humanas aos bilhões !!).

A automação do processo produtivo fez com que o esforço e o trabalho humano se tornasse dispensável, o que diminuiu os encargos trabalhistas consideravelmente. Contudo, aos que controlam os olhos e punhos do "Big Brother Mundial", restava a tarefa de lidar com a crescente insatisfação da população mundial oprimida com as bases organizativas de tal sistema (expressa, sobretudo, nas manifestações de Seattle, Montreal, Gênova e etc.). Como lidar com tais movimentos e fazer com que as engrenagens do mecanismo "Just In Time" do capitalismo mundial continuassem funcionando sem maiores interrupções?

Daí é que entrou em cena, a partir da década de 90 do séc. XX, o que, usando expressão cunhada pelo historiador italiano Carlo Ginsburg, poderíamos chamar de inteligência magistrada, aliada aos grandes capitalistas e compartilhando interesses com estes mesmos. A ação dessa "inteligência" nos países capitalistas centrais recrudesceu as "leis anti-motim", dando autorização legal para que fossem paralisados, até as últimas conseqüências, quaisquer focos contestatórios, legitimando (e sacralizando) juridicamente uma violência de Estado. Nos países capitalistas periféricos, tal prática foi acompanhada de um rigor cada vez menor à repressão da chamada "criminalidade convencional" (tráfico de drogas, roubos, assassinatos, etc.). Isto fez com que não apenas ocorresse o acontecido nos países capitalistas centrais como também houvesse, a partir de então, uma "diluição" –ou "terceirização" –dos agentes repressores (que passavam a se confundir com policiais, grupos paramilitares, narcotraficantes, etc; e a agir ora em esferas separadas, ora em esforços compartilhados e previamente planejados). Como pano de fundo, a mesma década de 90 testemunhou números recordes na produção industrial das armas de mão (sobretudo as de repetição como fuzis e metralhadoras), que muitas vezes aparece travestida de outros ramos ou negócios mais "inocentes" (bijuterias, grandes grifes, carros de luxo ou "esportivos", etc.) como forma de mascarar, através da ligação destas atividades por "teias de relacionamento" cada vez mais imbricadas, suas reais fontes de sustento.

O capital, desde os seus processos de mercantilismo / colonização, industrialismo / expropriação de terras até os tempos atuais de automação / telemática e alta acumulação do "capital financeiro" (pois que é praticamente uma riqueza circulante no chamado "universo virtual-especulativo"), tem sido norteado pelo massacre e o disciplinamento de corpos e mentes. Entretanto, a sua grande pulsão tanatológica (de morte) confirma-se ao constatarmos a naturalização do morticínio "em nome do dever" exercida pelas forças de segurança e controle social do Estado –dentro da chamada "legalidade burguesa" –ou dos grupos de extermínio, para resolverem as questões sociais "extralegalmente".

Do tráfico de drogas e suas disputas pelo controle das "bocas-de-fumo" até as grandes concorrências internacionais disputadas por grandes conglomerados empresariais, todos os elementos citados anteriormente são partes elementares –quase que "constituições orgânicas" –da atual fase do chamado "capitalismo globalizado". Este último recebe ainda o indulto adicional de um nítido processo de hegemonização arbitrária (e a conseqüente homogenização) de um modelo cultural e civilizador que se sobrepõe esmagando outras alternativas de organização da sociedade humana. Tal modelo capitalista globalizado acaba, assim, se tornando apenas mais um prognóstico no vasto receituário de violência simbólica e direta empreendido pelo nosso atual modelo econômico, tendo cada um desses dois aspectos como o outro e vice-versa.

Nos dias atuais, contudo, como se não bastasse a "barbárie cyberpunk" do capitalismo "globalitarista" (como costumava dizer o finado professor Milton Santos), com sua normatização do tempo, das pessoas e da vida; caminhamos, hoje, para o tópico da morte como parte do processo capitalista ( !! ). E diante de tal tendência, temos uma ampla multidão / platéia, virtual ou não, que pode vir a ser provável vítima de tal processo –muito em função da crescente alienação e desespero com relação ao futuro que parece ter tomado de assalto o inconsciente coletivo da maior parte das pessoas –salvo poucas e louváveis exceções.

Diante do atual espetáculo encenado no picadeiro midiático nacional construído sobre o atual discurso da "guerra contra o estado paralelo do narcotráfico" –que nada mais faz do que reinstrumentalizar a repressão e o domínio de um agente hegemonizador (o Estado/governo oficial) –fica a constatação extremamente precisa de que o sistema econômico raciocina e funciona por necessidades simultâneas de vida e morte, bem como pela liquidez gerada pela chamada "economia criminal" e a sua força. Um misto de tutela e "domesticação" extralegal de quaisquer potencialidades de comtestação e mobilização das populações marginalizadas em prol da melhoria de suas condições e da afirmação irrefutável inequívoca de seus plenos direitos de liberdade e cidadania.

A indústria do extermínio, além da "mera subtração" de vidas humanas (e também animais), detém inscrita em seus discursos e suas ações um paradigma surgido em seu "período de infância". Mais precisamente o sistema prisional descende, em seu aspecto organizacional e funcional, das antigas masmorras medievais, cujas funções primordiais se expressavam na contenção dos que eram considerados "loucos"*** bem como o adestramento destes mesmos para o trabalho –sobretudo –nas lavouras senhoriais. Nos dias atuais, o sistema carcerário funciona a bem do confinamento dos excluídos, o que fica nítido quando verificamos o que ocorre nos EUA (assim como no Brasil), onde a população carcerária cresce vertiginosamente –chegando mesmo a superar em muito o crescimento demográfico ocorrido do lado de fora das prisões. A maior parte dos detentos é de origem negra ou latina, havendo uma extensa fila de centenas de pessoas para serem executadas no corredor da morte –uma exclusividade de grupos de países "juridicamente avançados e desenvolvidos" tais como Estados Unidos, Paquistão, Nigéria, Arábia Saudita, Iêmen. Já no caso brasileiro, o "corredor polonês da morte" está sob a responsabilidade e administração diretos dos "grupos de extermínio" e o "tráfico de drogas", que se encarregam de fazer "extralegalmente" (e, em vários momentos, sob uma nítida "vista grossa" da polícia) tal serviço. Vivemos uma realidade onde a crise de nossos valores, crenças e motivações erigiu-se sob os contornos de um sistema de morte –punição perpetrada pelo Estado de direito (para as elites, é claro), distanciando os marginalizados da vida e de uma sociedade livre e democrática.          

* Pois que, na mentalidade machista e homofóbica de nosso povo, esse é o atributo feminino fundamental –sobre o qual repousa o próprio estatuto de feminilidade que uma mulher deve ter. Em suma, "ser gostosa é obrigação de toda mulher". Tal regra vale para louras, ruivas, morenas, mulatas..... (sejam estas dotadas ou não de cultura ou instrumental intelectual).

** Automatização da indústria, formação de blocos econômicos, ampliação das alianças militares dos países capitalistas centrais –OTAN / NATO –, centralização do receituário econômico para os países capitalistas periféricos através de órgãos internacionais –BID, FMI, OMC.

 

*** Opositores políticos e/ou populares, prostitutas, ladrões, assassinos, leprosos, bígamos de origem pobre, pequenos comerciantes e/ou lavradores endividados e etc.

 

Coletivo de Estudos Anarquistas Domingos Passos, 2002