Comecemos
este texto por uma constatação um tanto óbvia mas necessária para
chegarmos aos pontos centrais que nos dispomos a tratar nas linhas
mais abaixo. Vivemos, infelizmente, em um país onde a educação, quando
não é pouco valorizada, é solenemente ignorada por aqueles que, no
campo dos discursos políticos oficiais, deveriam cuidar de tão importante
aspecto. Mas por que começar o presente texto com tão óbvia observação?
A resposta pode ser encontrada numa (grave) constatação sobre nossa
sociedade.
A
ausência quase total de um cuidado mais especial com questões referentes
à educação de nossa população (sobretudo em sua porção mais desfavorecida
econômica e socialmente) fez surgir, com o passar dos anos, uma espécie
de "anomalia" sociocultural entre nós, brasileiros. Ao invés
de procurarmos uma autocompreenção mais profunda acerca de nossos
problemas e particularidades (enquanto "Povo"), aceitamos
de bom grado os "lugares-comuns" e os "estereótipos"
sobre nós mesmos como fontes de explicação sobre quem ou o quê somos
(nos tornando, assim, o "povo" com quem tão freqüentemente
lidamos em nosso dia-a-dia).
Daí
é que surgiram, gradualmente, verdadeiras "pérolas interpretativas"
muito comuns em nosso "recalque social de cidadania" como
"o baiano preguiçoso que odeia ouvir a palavra trabalho",
"a mulher burra (porém 'gostosa')
que subiu na vida porque 'deu' para o chefe", "o 'preto favelado' que, por ser 'preto' (e, sobretudo, favelado), não presta", "o aposentado que, devido à sua
situação, 'ascende' à categoria de vagabundo",
dentre vários outros. No geral, todos estes "postulados ou escaramuças
sociais" acabam, no mais das vezes, cumprindo o papel de referendo
e legitimação –através do senso
comum –de uma série de visões simplistas que nada mais fazem do
que mascarar um número tal de preconceitos que estão presentes em
nossa formação enquanto seres sociais.
Uma
outra nova interrogação pode, aqui, ter tomado de assalto a sua mente,
leitor: por que fazer um desvio tão grande com relação à temática
central do texto? Seria falta de conhecimento sobre o tema por parte
de seus autores ou pura esquizofrenia dos mesmos? Interrogações à
parte, insistimos no ponto de que a constatação do simplismo sociocultural que parece marcar
nossa vida cotidiana é (apesar de não o parecer) muito importante
para entendermos como determinadas questões referentes à prática de
cidadania são abordadas e tratadas pelo conjunto geral de nossa sociedade.
Dentro desse quadro, os debates acerca do problema da "segurança
pública" –atual "menina-dos-olhos" das pautas jornalísticas
dos grandes órgãos de mídia nacionais –não fogem a esta regra. Sobretudo
quando analisamos as formas de controle e manutenção da "ordem
pública" por parte dos órgãos oficiais de contenção social, ao
agirem estes (pelo menos alegadamente) contra o chamado "crescimento
da violência".
A
"lógica" da violência empreendida por parte das forças de
controle e "segurança" social (sobretudo em sua expressão
policial), quando de suas incumbências relativas à manutenção da "ordem
pública", não é de nenhuma forma um tipo de singularidade, ineditismo
ou exceção. Considerando essa questão, o aspecto jurídico presente
no alegado zelo, por parte das instâncias oficiais de poder, pela
segurança pública, resguarda na verdade o que podemos considerar como
sendo o "monopólio da violência" do Estado capitalista (e
nos "socialistas" também).
Tal
monopólio tem como uma de suas funções primordiais refratar entre
a sociedade brasileira um discurso tal onde os "infratores"
(sejam eles criminosos, "vadios", desempregados ou contestadores
de uma ordem social que é excludente) são todos tratados como uma
minoria perturbadora da "ordem pública" que se destina a
proteger os "cidadãos-de-bem" –entendidos aqui como trabalhadores
dóceis e pacíficos. Tal afirmação é feita, em sua composição, de mecanismos
jurídicos auto-legitimadores e reafirmadores que perpassam de forma
inequívoca todo o discurso de poder (seja este de Estado e/ou de governo),
indo sempre do sentido legal para o político e social. Tomando por
base o exposto, nos é possível configurar um tipo de mecanismo que
mascara mas não esconde uma violência que é inerente ao próprio sistema
econômico-social capitalista (tanto "liberal" quanto "neo-liberal").
Muitas
vezes a força policial executa ao invés de prender o indivíduo infrator,
registrando este fato/prática por um tipo de procedimento que, no
jargão policial, é chamado de "ato de resistência" –que,
segundo os códigos de conduta das corporações, é ilegal. Entretanto,
a organização burocrática do Estado e a própria prática dos "profissionais
de segurança pública" acabam produzindo uma cadeia de discursos
abonadores de tais ações entre os representantes do sistema judiciário
(delegados, promotores, juizes....). Para as forças de patrulhamento
e contenção social, a semântica é muito simples e direta: basta fazer
calar –por quaisquer meios –as frações de nossa sociedade "potencialmente
problemáticas", que encontram-se, então, todas as soluções para
a questão da "violência" (ou, como diriam alguns programas
que costumam vender bugigangas pela TV, tal postura "não requer
prática nem tampouco habilidade").
Se
considerarmos tal prática, iremos perceber que esta nada mais é do
que um dentre os vários reflexos do simplismo sociocultural cotidiano, maniqueista
e preconceituoso marcante em nossa formação histórica e social sobre
o qual já tivemos oportunidade de abordar mais acima. Tal conjuntura
é percebida sem muito esforço ao nos depararmos com o que ocorre,
por exemplo, na atual prática das "cabeças pensantes" dos
órgãos policiais do estado do Rio de Janeiro, cujas nebulosas profundezas
de seus inconscientes pariu em nossa sociedade uma criatura amorfa
que parece caminhar a "passos de bêbado" (mas que, entretanto,
é dotada de um grande e pesado porrete tatuado com insígnias federais
!!) chamada "Força Tarefa Federal". Contudo, cabe aqui deixar
claro que o exemplo carioca pode muito bem encontrar seus similares
nos demais estados brasileiros, bastando apenas uma observação e/ou
análise de conjuntura mais detida acerca de cada peculiaridade dos
mesmos acerca de tal assunto.
Como
se não bastasse, percebemos também que este procedimento ou modus
operandi empreendido pelas forças de arbítrio não se dá apenas
com os indivíduos autuados nas malhas da justiça oficial como infratores.
Sob a ótica do atual aparato policial do Estado/governo, movimentos
sociais reivindicatórios (e sobretudo legítimos) parecem gozar deste
mesmo estatuto "criminalizado". E nesse sentido os grandes
órgãos midiáticos –principalmente a grande imprensa jornalística nacional
–tem prestado grande colaboração. Basta nos depararmos com a faceta
de "organização" ou "quadrilha" que os grandes
informativos impressos e televisionados brasileiros tem atribuído
–só para citar um único exemplo –ao Movimento dos Sem Terra, onde
a ação equivocada de certas "lideranças" e/ou individualidades
vinculadas ao movimento são tomadas como a "via de regra"
de toda uma coletividade, deixando de lado a grande diversidade humana
e de idéias que a caracteriza. Em suma, parece haver, diante de tais
posturas e ações, uma contínua perpetuação do "cartesianismo
positivista judiciário" em nosso país. Este coloca a verdadeira
vítima –que muitas vezes sofre com a opressão e exploração diárias
–na situação de RÉU (ou
em alguma série numerada nas gavetas de alguma repartição do Instituto
Médico Legal) e os verdadeiros agressores (O Estado e as suas forças
de segurança) como VÍTIMAS que
se defendem (atirando primeiro), sempre na qualidade de "guardiões
da sociedade".
Esse
quadro ilustra, em grande parte, as facetas elitista e governista
presentes nas soluções de conflitos construídas pelo Estado brasileiro
e aditivadas pela exclusão –fenômeno inerente e orgânico ao próprio
sistema econômico e social pelo qual nosso país é organizado. Conforme
já dissemos anteriormente, tal fenômeno é de forma alguma inédito
e encontra suas raízes históricas no Brasil colonial. Não é mais novidade
o fato de que o nosso país foi fundado através da violência e extermínio
do colonizador. Estas tem sido, aliás, as "marcas de nascença"
não apenas da praxis de
nosso "gerenciamento estatal" (que agora recebe o tributo
adicional da chamada iniciativa
privada nas demandas em prol da "manutenção da ordem"),
mas, de sobremaneira, no nosso capitalismo truculento e aristocrático
–mas....pensando bem....desconfiamos que essa mesma violência se expressa
pintada com cores frias e mórbidas em várias partes de nosso planeta.
É
possível notarmos em nosso país a presença de uma "indústria
do extermínio", que intensificou seu processo fabril com a ascensão
da globalização capitalista, onde a "reestruturação produtiva" colocou uma ampla parcela da população
mundial (menos, é claro, as elites) em estado de indigência por tempo
indefinido. Tomando como base a última afirmação, podemos perceber
mais facilmente a implementação, em nível global, de uma política
de "terra-arrasada" –sobretudo nos campos político, econômico
e ideológico –que caminha, digamos, "de mãos dadas". Para
o sistema, tornou-se necessário em nossos dias não mais a existência
de mão-de-obra sobrante (ou "exército de reserva") mas sim
a sua "não existência" já que, aos olhos do capital, ela
se tornou supérflua (e, só para lembrarmos, estamos falando de vidas
humanas aos bilhões !!).
A
automação do processo produtivo fez com que o esforço e o trabalho
humano se tornasse dispensável, o que diminuiu os encargos trabalhistas
consideravelmente. Contudo, aos que controlam os olhos e punhos do
"Big Brother Mundial", restava a tarefa de lidar com a crescente
insatisfação da população mundial oprimida com as bases organizativas
de tal sistema (expressa, sobretudo, nas manifestações de Seattle,
Montreal, Gênova e etc.). Como lidar com tais movimentos e fazer com
que as engrenagens do mecanismo "Just
In Time" do capitalismo mundial continuassem funcionando
sem maiores interrupções?
Daí
é que entrou em cena, a partir da década de 90 do séc. XX, o que,
usando expressão cunhada pelo historiador italiano Carlo Ginsburg,
poderíamos chamar de inteligência magistrada, aliada aos grandes capitalistas e compartilhando
interesses com estes mesmos. A ação dessa "inteligência"
nos países capitalistas centrais recrudesceu as "leis anti-motim",
dando autorização legal para que fossem paralisados, até as últimas
conseqüências, quaisquer focos contestatórios, legitimando (e sacralizando)
juridicamente uma violência de Estado. Nos países capitalistas periféricos,
tal prática foi acompanhada de um rigor cada vez menor à repressão
da chamada "criminalidade convencional" (tráfico de drogas,
roubos, assassinatos, etc.). Isto fez com que não apenas ocorresse
o acontecido nos países capitalistas centrais como também houvesse,
a partir de então, uma "diluição" –ou "terceirização"
–dos agentes repressores (que passavam a se confundir com policiais,
grupos paramilitares, narcotraficantes, etc; e a agir ora em esferas
separadas, ora em esforços compartilhados e previamente planejados).
Como pano de fundo, a mesma década de 90 testemunhou números recordes
na produção industrial das armas de mão (sobretudo as de repetição
como fuzis e metralhadoras), que muitas vezes aparece travestida de
outros ramos ou negócios mais "inocentes" (bijuterias, grandes
grifes, carros de luxo ou "esportivos", etc.) como forma
de mascarar, através da ligação destas atividades por "teias
de relacionamento" cada vez mais imbricadas, suas reais fontes
de sustento.
O
capital, desde os seus processos de mercantilismo / colonização, industrialismo
/ expropriação de terras até os tempos atuais de automação / telemática
e alta acumulação do "capital financeiro" (pois que é praticamente
uma riqueza circulante no chamado "universo virtual-especulativo"),
tem sido norteado pelo massacre e o disciplinamento de corpos e mentes.
Entretanto, a sua grande pulsão tanatológica (de morte) confirma-se
ao constatarmos a naturalização do morticínio "em nome do dever"
exercida pelas forças de segurança e controle social do Estado –dentro
da chamada "legalidade burguesa" –ou dos grupos de extermínio,
para resolverem as questões sociais "extralegalmente".
Do
tráfico de drogas e suas disputas pelo controle das "bocas-de-fumo"
até as grandes concorrências internacionais disputadas por grandes
conglomerados empresariais, todos os elementos citados anteriormente
são partes elementares –quase que "constituições orgânicas"
–da atual fase do chamado "capitalismo globalizado". Este
último recebe ainda o indulto adicional de um nítido processo de hegemonização
arbitrária (e a conseqüente homogenização) de um modelo cultural e
civilizador que se sobrepõe esmagando outras alternativas de organização
da sociedade humana. Tal modelo capitalista globalizado acaba, assim,
se tornando apenas mais um prognóstico no vasto receituário de violência
simbólica e direta empreendido pelo nosso atual modelo econômico,
tendo cada um desses dois aspectos como o outro e vice-versa.
Nos
dias atuais, contudo, como se não bastasse a "barbárie cyberpunk"
do capitalismo "globalitarista" (como costumava dizer o
finado professor Milton Santos), com sua normatização do tempo, das
pessoas e da vida; caminhamos, hoje, para o tópico da morte como parte
do processo capitalista ( !! ). E diante de tal tendência, temos uma
ampla multidão / platéia, virtual ou não, que pode vir a ser provável
vítima de tal processo –muito em função da crescente alienação e desespero
com relação ao futuro que parece ter tomado de assalto o inconsciente
coletivo da maior parte das pessoas –salvo poucas e louváveis exceções.
Diante
do atual espetáculo encenado no picadeiro midiático nacional construído
sobre o atual discurso da "guerra contra o estado paralelo do
narcotráfico" –que nada mais faz do que reinstrumentalizar a
repressão e o domínio de um agente hegemonizador (o Estado/governo
oficial) –fica a constatação extremamente precisa de que o sistema
econômico raciocina e funciona por necessidades simultâneas de vida
e morte, bem como pela liquidez gerada pela chamada "economia
criminal" e a sua força. Um misto de tutela e "domesticação"
extralegal de quaisquer potencialidades de comtestação e mobilização
das populações marginalizadas em prol da melhoria de suas condições
e da afirmação irrefutável inequívoca de seus plenos direitos de liberdade
e cidadania.
A
indústria do extermínio, além da "mera subtração" de vidas
humanas (e também animais), detém inscrita em seus discursos e suas
ações um paradigma surgido em seu "período de infância".
Mais precisamente o sistema prisional descende, em seu aspecto organizacional
e funcional, das antigas masmorras medievais, cujas funções primordiais
se expressavam na contenção dos que eram considerados "loucos"
bem como o adestramento destes mesmos para o trabalho –sobretudo –nas
lavouras senhoriais. Nos dias atuais, o sistema carcerário funciona
a bem do confinamento dos excluídos, o que fica nítido quando verificamos
o que ocorre nos EUA (assim como no Brasil), onde a população carcerária
cresce vertiginosamente –chegando mesmo a superar em muito o crescimento
demográfico ocorrido do lado de fora das prisões. A maior parte dos
detentos é de origem negra ou latina, havendo uma extensa fila de
centenas de pessoas para serem executadas no corredor da morte –uma
exclusividade de grupos de países "juridicamente avançados e
desenvolvidos" tais como Estados Unidos, Paquistão, Nigéria,
Arábia Saudita, Iêmen. Já no caso brasileiro, o "corredor polonês
da morte" está sob a responsabilidade e administração diretos
dos "grupos de extermínio" e o "tráfico de drogas",
que se encarregam de fazer "extralegalmente" (e, em vários
momentos, sob uma nítida "vista grossa" da polícia) tal
serviço. Vivemos uma realidade onde a crise de nossos valores, crenças
e motivações erigiu-se sob os contornos de um sistema de morte –punição
perpetrada pelo Estado de direito (para as elites, é claro), distanciando
os marginalizados da vida e de uma sociedade livre e democrática.
Coletivo
de Estudos Anarquistas Domingos Passos, 2002