Para todos aqueles que tem assistido
aos veículos eletrônicos de mídia nos últimos dias, tem sido mostrado
repetida e incessantemente veiculado nos mesmos séries ininterruptas
de plantões jornalísticos dando conta de um igualmente alardeado aumento
da insegurança. Filho mau parido cuja paternidade, negada com veemência
pelos que esquentam as poltronas e ocupam escrivaninhas nos cargos
e instâncias de Poder, teria como responsabilidade e “causa” diretas
um crescimento descontrolado da “violência”. Tal o qual costuma ocorrer
com “certa freqüência e assiduidade em centros espíritas e terreiros
de umbanda / candomblé”, uma estranha entidade, que atende pelo nome
de “violência”, parece ter possuído (e em alguns casos tomado de assalto)
o corpo de nossa sociedade, gerando discussões, quando não difusas,
obtusas e equivocadas quando vistas, sobretudo, à luz do discurso
midiático.
O debate sobre a “violência”,
tanto na academia quanto na fala dos vários interlocutores sociais,
no mais das vezes, costuma apresentar-se de forma fragmentada, refratada
e compartimentada (onde a “violência” perde o seu caráter temático
e chega, mesmo, a assumir ares de “coisa” ou “criatura”). Tal constatação,
aliás, já é prática habitual em nosso “cartesianismo positivista tropical”
(expresso em categorizações tais como violência econômica, violência
policial e etc.). É comum também que tal debate se apresente de forma
/ maneira monolítica (quase hobbesiana) onde, negando as particularidades
presentes nesta questão, a chamada “violência” é apresentada como
se esta fosse um “todo coeso”. Contudo, a grande questão é que “a
violência” pode ser encarada como algo presente inequivocamente na
organização atual de nossa sociedade, exercendo sobre esta mesma uma
força tão decisivamente influente e legitimadora quanto aquela presente
no “esquema da matéria de Física do Ensino Médio” que se faz exercer
sobre um móvel, pondo-o em movimento, no chamado “movimento retilíneo
uniforme”.
A grande ausência “presente”
nesta questão reside na indiferença solenemente praticada nos chamados
“meios informativos oficiais” à menção ao caráter histórico e social
desta temática, que é múltipla (e não cindida) em sua complexidade
e que tem como norte magnético a esfera interclasses e interétnica.
A respeito desse assunto, principalmente nas várias conjunturas do estado do Rio de Janeiro
(mas bem que esta pode ser encarada em relação ao restante do Brasil),
a transmissão e publicização do debate sobre a violência se deu mais
massificadamente no período histórico correspondente à chamada “abertura
política” do regime ditatorial militar imposto ao nosso país (espaço
temporal que transcorre entre fins dos anos 70 e inícios dos anos
80). Bem.......pelo menos de forma aparente, pois o controle do poder
de Estado –e, conseqüentemente, das forças de coerção –ainda se encontravam
nas mãos do alto generalato no período em questão. Em termos semânticos
e práticos, falar-se em abertura democrática em plena vigência de
uma ditadura militar representava, no mínimo, um paradoxo cuja lógica
residia na ânsia de controle dos militares sobre os processos graduais
de autodestruição de seus próprios mecanismos de domínio e controle
do país, sem o risco da perda de sua força e influência já estabelecidos
nesses mesmo campo de ação.
À “abertura política” seguiram-se
os processos de anistiamento das pessoas perseguidas politicamente
pela ditadura militar (processos estes que –vale lembrar –nasceram
de amplas reivindicações, sobretudo, de indivíduos e entidades ligadas
aos vitimados por tais perseguições) e a desregulamentação “lenta,
gradual e segura” dos famigerados “atos institucionais” (sobretudo
o de número 5, que era verdadeira fonte de medo e apreensão). Neste
período, a questão do “debate sobre o aumento da violência” foi amplificado
e massificado pelas mídias eletrônica e impressa. Entretanto, enquanto
fenômeno midiático, a abordagem espetacularizante pela qual a temática
da “violência” passará a ser abordada a partir de então nada tinha
de inédita.
Durante a vigência da ditadura
militar, as táticas de propaganda empreendidas pelo governo pautaram-se,
em sua maior parte, por um misto de ufanismo às “virtudes nacionais”
com a necessidade de combate ao “terrorismo patrocinado por Moscou”
que, segundo o preconizado por tais campanhas, eram os grandes responsáveis
por infligir à população brasileira o clima de insegurança e de violência
que então se fazia alegadamente reinante. E no dicionário dos generais
ditadores, o verbete “violência” encontrava na palavra “terrorista”
um sinônimo muito apropriado. E o chamado “terrorismo” incluía num
mesmo pacote tanto os movimentos populares que procuravam questionar
o governo através de um campo de ação “legal” quanto os grupos de
esquerda armados que se pautavam suas “ações revolucionárias” na necessidade
de um embate direto contra a ditadura militar. No que diz respeito
ao discurso propagandesco dos militares, o combate à “violência” implicava
a luta contra o “terrorismo” definido nos termos já mencionados, sob
a “missão sagrada” de restabelecer a “ordem pública”.
Ordem esta que encontrou no
viés do “Milagre Econômico” –e a posterior “necessidade” de inserção
do Brasil nas imbricadas teias da capitalismo internacional –o principal
ponto para onde pudesse convergir a busca do apoio de setores da burguesia
nacional ao regime ditatorial dos militares. Tal apoio era encarado
como um grande e importante alicerce financeiro à ditadura. Apoio
que necessariamente resultou em subsídios faraônicos, por parte dos
generais presidentes, às elites empresariais (e seus interesses),
que por sua vez trataram de se cercar de uma tecnocracia “ungida intelectualmente” nas principais
universidades americanas e européias (pontas de lança do neo-liberalismo
então nascente). Estas, integrando os quadros governamentais, ficaram
responsáveis por sacralizar no campo político os interesses econômicos
das elites empresariais. Como parte desse acordo tácito (estratégico)
entre os militares e os grupos empresariais, ficava à cargo dos então
crescentes impérios midiáticos (expressos sobretudo no “poder de informação”
adquirido pelas Organizações Globo) a propaganda, no campo civil,
contra o “terrorismo” (jornais O Globo e Estado de São Paulo e tevês
Globo, Tupi e Excelsior sobretudo). Com a chegada dos tempos de “abertura”
e “anistia”, o discurso contra a “violência”, empreendido pelas elites
civis e militares da ditadura, se encontrava carente de um “locus” mais específico, pois a maior parte das
antigas “organizações terroristas” (sobretudo os grupos guerrilheiros)
já haviam sido debeladas pelo regime militar, fosse pela força das
armas e/ou das técnicas de tortura, fosse através do “convite” ao
exílio no estrangeiro, fosse através dos problemas de ordem interna
que marcaram a própria existência dessas mesmas “organizações”.
A antiga “ameaça vermelha” já
não podia ser mais usada como alegação para uma presença militar justificada
no combate à “violência” expressada na “ação terrorista”. As vozes
que outrora se insurgiram contra o domínio político ditatorial dos
militares, haviam se transformado (quando muito) em sussurros breves
e praticamente inaudíveis. Somado a isto, avolumavam-se e cresciam
em sonoridade social as denúncias sobre as práticas arbitrárias do
regime militar na repressão aos seus “elementos indesejáveis” –principalmente
no que diz respeito às práticas de tortura, o que provocou a reação
de órgãos e entidades internacionais ligados à defesa dos direitos
humanos contra tais práticas empreendidas nos porões do governo militar,
que até então “varria” tais denúncias para “debaixo do tapete político-social”.
Em suma, não bastasse a quase ausência de um “elemento nocivo” que
pudesse legitimar a “presença fardada” nas poltronas e escrivaninhas
do poder de Estado em favor do “combate à violência”, este mesmo poder
de Estado, expresso no controle ditatorial exercido pelos militares,
se encontrava, digamos, “mau na foto”, com várias pequenas centelhas
ilustradas em denúncias de arbitrariedade circulantes entre a opinião
pública que constantemente lhe “queimavam o filme”.
Não é de se espantar que, sobretudo
a partir do final dos anos 70, o debate acerca da “violência” testemunha
uma mudança drástica com relação aos pontos por este abordados e observados
no discurso oficial então produzido pelas esferas de poder acerca
do tema. Da repressão político-social aos “desagregadores da Ordem
Pública”, a questão do “combate oficial (via poder de Estado) à violência”
passa a experimentar então, por assim dizer, uma “redescoberta da
pólvora”, com a elevação de um novo agente desagregador –o binômio
criminalidade + violência (sobretudo
em sua expressão nas áreas urbanas) –à categoria de “inimigo público
N.º 1 da sociedade”. O Estado ditatorial brasileiro de então, ao travestir
sua presença autoritária na sociedade através da utilização do simulacro
de “debate / diálogo” com esta mesma, no trato com a tão falada “questão
da violência”, nada mais fez do que redistribuir o ônus da necessidade
em se combater tal problemática ao incremento da repressão policial
(com a rearticulação dos serviços de inteligência, a fim de que estes
parecessem desconstruídos à época). Força policial, esta, que ainda
pautava (e em vários aspectos continua pautando) sua ação na arbitrariedade
e da truculência –princípios basilares sobre os quais se pautava a
presença militar no poder de Estado.
Ou seja, a ambigüidade e o sofisma
do conceito “violência” fora então posto à prova principalmente quando
as polícias ainda agiam sob a lógica da contenção social de um “inimigo
interno articulado externamente”, mascarando o fato de que a possibilidade
real de conflitos sociais concretos que afetavam (e ainda hoje afetam)
a sociedade poderiam estar (e assim o era de fato) contribuindo para
a disseminação do fenômeno que o regime se propunha a “discutir”.
Soma-se a isto o acordo tácito entre militares e elites civis pertencentes
ao empresariado que viam na questão da manutenção da “ordem pública”
uma das principais fontes de perpetuação de seus poderes e “mandonismos”.
Nos tempos de abertura, tal acordo necessariamente resultou numa maior
ênfase –por parte, sobretudo, dos meios midiáticos –ao problema de
dar combate à “violência” sob o novo prisma da luta contra a “criminalidade”.
Em tempos de crescente massificação
dos meios de comunicação e aperfeiçoamento cada vez maior das técnicas
de propaganda, o tópico do “combate à violência” acabou gerando “filhotes”
paridos por cissiparidade –tal como as amebas. Um desses “filhotes”
pode ser distinguido no chamado problema da “segurança pública”. Entre
o fim dos anos 70 e início dos anos 80 (assim como ocorre atualmente),
a questão da “segurança pública” acabou cooptando amplos setores da
sociedade civil para o discurso produzido conjuntamente entre o governo
militar e o grande empresariado nacional, ressonando para o conjunto
geral da população brasileira o eco de consenso catalisado e catapultado
pela mídia com relação à necessidade de salvaguarda da “ordem pública”
(de quem a “segurança pública” era aparentada). E, tal qual o ocorrido
nos dias de hoje, o debate em torno da luta em prol da “segurança
pública” rendeu defesas histéricas às bases pelas quais sua ação,
segundo o que era pretendido pela ditadura, deveria transcorrer.
Tal iniciativa fez com que,
gradualmente, fosse construído e constituído –sobretudo no campo ideológico
–um fenômeno estranho e esquizóide (para não dizer “bizarro”). Fenômeno
este onde cidadãos comuns, iguais a todos aqueles que costumamos ver
todo dia nas constantes e martiriosas aglomerações populares cotidianas
(filas de banco, tráfego de transeuntes nas calçadas, feiras livres,
pontos de ônibus, etc.), clamassem, como que fazendo coro com a elite,
por um incremento das forças repressivas e a conseqüente remilitarização
da sociedade. Uma mesma sociedade claramente e marcadamente autoritária,
dominada, elitizada e reprimida (e também –diante do exposto –“sadomasoquista”!!),
caracterizada, no cerne de seu processo histórico e social de formação,
por um violento processo espoliativo baseado no arbítrio e na escravatura.
O que vemos aqui é uma situação
histórica e socialmente construída onde o discurso hegemônico foi
o construído pela combinação militares
/ empresariado, que conseguiu fazer com que o debate acerca da
“violência”, ainda que tivesse sido massificado, continuasse seguindo
a linha / plataforma política defendida pelos donos do poder. Como
exemplo claro desta questão temos o mandato do antigo interventor
federal no estado do Rio de Janeiro (ou o que ficou conhecido como
“governador biônico”) Chagas Freitas, que instituiu na PM carioca
o prêmio por “atos de bravura” (hoje chamado de “prêmio faroeste”
ou “bang-bang”). Em linhas gerais, isso significava a “justificação”
e a “premiação” às forças de controle social pela repressão às “entidades
degenerativas” que punham em questão a boa manutenção da “ordem pública”
–fossem estas criminosas ou não. Tal postura diante do alegado aumento
da “criminalidade” nada mais significava do que a permanência –insistimos
–de uma lógica que ainda lidava com “inimigos internos criados externamente”.
Esta procurava cumprir a função pura e simples de referendar a logística
militarista da ditadura que então entrava em seus estertores.
É necessário atentarmos para
um ponto de suma importância. A questão da “violência”, que de tempos
em tempos costuma atrapalhar o sossego dos “bons cidadãos”, não é
(nunca foi e, certamente, nunca será) algo inédito e em nada tem a
ver com a ideologia fabricada “de cima” pelo senso comum de que a sociedade brasileira é o resultado histórico
de um consenso “cordial”, pacífico e conciliador (o “mito” das 3 raças seja, talvez, o mais emblemático dessa
falácia). Exemplos históricos não faltam para constatar o fato de
que a sociedade brasileira foi construída a ferro e fogo: o genocídio
físico e cultural dos povos indígenas (considerados não-humanos pelos
colonizadores), o mercado de seres humanos expresso na escravidão,
a resistências afro-brasileiras contra o jugo escravista (quilombos),
o “medo branco” contra os negros libertos, que no fim do Império e
início da República foi uma “questão social” –passando, a partir de
1889, a ser encarada como uma “questão de polícia”. Polícia, esta,
que nasceu, tal qual “a conhecemos”, nos primórdios do regime republicano,
para reprimir os “negros livres”.
Ou seja, desde os bandeirantes
que matavam os índios em troca de ouro e “capitães-do-mato” que “reseqüestravam”
os africanos fugidos das fazendas até a fundação de nossa força policial,
o combate a “violência” tem sofrido constantes reformulações e rearticulações
por parte dos aparelhos de controle e contenção social (como diz a
letra de música da banda O Rappa:
“...todo camburão tem um pouco de navio negreiro”).
As elites nacionais apresentam
alguns sintomas periódicos que dão conta das formas pelas quais costumam
agir. Primeiro eliminam um grupo social que as contestam de alguma
forma (contestação, esta, que na ótica dos grupos dominantes se dá,
em alguns casos, pela sua simples existência –povos indígenas, negros
aquilombados, anarquistas, trabalhadores sindicalizados, movimentos
estudantis, guerrilheiros e etc.). Em segundo lugar, ocorre não o
extermínio mas a estigmatização dos grupos sociais oprimidos e excluídos
como “bode expiatório” dos problemas que afligem o bom andamento da
“ordem pública” (Ex: o índio indolente, o negro fujão, o camponês
matuto e preguiçoso, o anarquista-sindicalista desordeiro da República
Velha, o terrorista antipatriota dos anos 60, os grupos criminosos
articulados com os presos políticos –anos 70 –ou traficantes de drogas
–anos 80 e 90 –e a “favela negra e perigosa” dos dias atuais). O que
existiu e existe de fato é o sentido nítido assumido pelas práticas
políticas dos setores dominantes da vida nacional em “embaçar” a visão
geral de nossa sociedade para a verdadeira questão de fundo que é
o aprofundamento e a rearticulação das relações de produção capitalistas
e o seu projeto de contínua espoliação do Brasil.
A histeria com que a questão
da “segurança pública” é aplaudida pelas camadas médias de nossa sociedade
nada mais faz do que camuflar as práticas autoritárias das elites
político-econômicas em benefício da hegemonização de seu discurso
acrítico, que procura permear a sociedade civil como um todo buscando
legitimidade e “legalidade” para as suas práticas. E, tal qual ocorrera
durante os tempo de “milagre econômico” e “reabertura política”, o
discurso feito em prol da defesa da “segurança pública” contra o aumento
da criminalidade esconde, na verdade, uma outra importante variável
de análise que é a aplicação e o incremento de um modelo capitalista
industrial altamente concentrado combinado a uma urbanização galopante
e caótica cuja principal função é fornecer um número cada vez maior
de mão-de-obra barata (porque acéfala).
Em nosso país e sociedade, as práticas conservadoras e autoritárias
de arbítrio sempre se ocultam sobre uma fachada “liberal”, “moderna”
e “consensual”. Entretanto, por mais que a máscara de suas ações seja
ornamentada, ela não consegue esconder por completo suas verdadeiras
intenções e alguns “atos falhos” (como sintomas de seus próprios recalques)
para os olhos mais atentos de alguns espectadores que conseguem enxergar
sua verdadeira lógica.
Coletivo
de Estudos Anarquistas Domingos Passos, 2002