Voto e Domínio - Arqueologia das Urnas

Quem Nasce neste Globo, Deve Ser Desenganado
Ou Há de Ser Governante, Ou Há de Ser Governado

Breve virão as novas
de grande transformação.
Uns dirão que é evangelho,
outros que é revolução.
Mas os tais homens de bem
que escondem a verdade
Em defesa de seus bens
darão nome liberdade
à mais velha escravidão..

O voto liberal é sim uma arma, e virada direto pra nós mesmos. Mudanças? Empregos? Reformas? Pura blasfêmia. O que teremos pela frente, é que firmar novamente, e obrigados, um documento chamado Pacto Social. Muitos ainda são os crentes que o firmam de boa vontade, e não faltam oportunistas para convencê-los. O próprio candidato da reforma, o Lula, já disse que os marajás existirão ad eternum, e com esta frase, parece que assim como o latim. Disse também que a maneira mais civilizada, por exemplo, de resolver os problemas da falta de democracia dos meios de comunicação durante as eleições é sentar-se na mesa com os donos desses meios. Que civilização de merda não! Quanto àqueles declaradamente de direita, não precisamos dizer nada além de que são os próprios criminosos, bandidos, assassinos que mantém a humanidade na miséria e como uma legião de escravos.

Não! Não queremos a volta da ditadura! Logo nós? Pensar isto já seria insulto bastante. Somente e simplesmente queremos, isso sim, o fim de uma ditadura que nunca terminou, que "permanece" violentando, humilhando e assassinando os povos de nossa terra faz mais de 500 anos, que por mais que mude de tom, permanece com a mesma cor, de terror. Cor que não se vê, mas que tortura, toma, cega, ofusca o verde, o azul, o vermelho, o negro e as cores de toda nossa gente, de nossas culturas, as cores da vida, deste continente que ainda resiste em pulsar e pintar. Dentro da desenvolvida ordem mundial capetalista e terrorista, não existe hoje espaço sequer para reformas, todas elas estão a caminho do buraco. Temos que buscar nossa herança de confederados tamoios, cabanos, palmarinos. Esta sociedade não é nossa, ela é ruim, nos exclui, somos guarani em busca da terra sem mal, somos quilombolas aguerridos, fomos também escravos dos romanos, servos dos senhores, e não esperamos mudanças vindas daqueles que nos massacraram, daqueles que nos acorrentaram e violentaram.

Os navegadores trouxeram consigo o Egito dos faraós, a Babilônia dos reis, a Roma dos césares, e entre eles, muitos de nossos ancestrais, seus escravos. Podeis ver, eles também estão lá na Bíblia, ou no De Bello Gallico, algumas vezes se conformando, outras lutando por sua liberdade, cultura e dignidade. A lei do mais forte sempre justificou por si só a existência de um Governo. A diferença agora é que eles querem que nós assinemos um contrato, e nos obrigam a isto. Se o centurião servia a César, será que o cabo da polícia serve a quem? Dizer que serve à população não pode ser! Essa história faria dormir até o Boi Apis, de Tebas. Se é esta mesma população que é humilhada, se é ela que sofre os abusos da autoridade! Mas é isso o que nos querem fazer acreditar. Foi assim que mataram as Revoluções. Dizem que as autoridades ainda acima dos policiais, são gente eleita pelo povo, ou que são a ditadura do povo, e então no fim das contas, eles estão servindo ao povo... piada.

Essa herança nefasta não nos é autóctone portanto, e tampouco para a maior parte dos povos do mundo, também escravizado. E por mais que pareçam mudar os aristocratas patrícios, arianos, normandos e diferentes classes de nobreza e de casta em todo o mundo através de milhares de anos, boa parte desta mudança não passa de aparente, se consideramos a recorrente reivindicação racial dos donos do poder. Se encontramos uma política oficial de aparthaid em um país africano até recentemente, a exterminação física dos povos indígenas e de suas culturas, inferiorizados pelo racismo dos invasores europeus, a exploração do negro e sua exclusão política em toda a América. A cultura européia das elites da América, a permanência das famílias de "sangue azul" no hemisfério norte, o ideal de uma suja raça superior pelos nazistas, todos guardam uma reivindicação de consangüinidade com os mais antigos opressores.

A política estatal ou senhorial também tem uma tecnologia que lhe é própria, e portanto desenvolvida nestes alguns milhares de anos de existência, mas também encontramos algumas permanências, e estas são ainda piores, porque assim como os adaptados crocodilos, libélulas, tubarões e baratas são ancestrais na natureza e existem praticamente imutáveis a milhões de anos, estas permanências se encaixaram tão perfeitamente em regras gerais do sistema que permanecem também praticamente imutáveis. São estas as leis, os tribunais, as corporações militares, a corte, hoje mais conhecida como classe política, e assim inúmeras outras instituições e práticas, como por exemplo a cooptação, o clientelismo e a alienação.

A cooptação sempre se deu através de uma distribuição de poderes a partir de determinado poder central, para poderes locais, que poderiam ser submetidos através da força, mas que também ascendiam muitas vezes pelas preferências do próprio poder central, isso se dava principalmente quando estes poderes locais estavam dispostos a trair o próprio povo. Os espólios da guerra e o soldo devem ser incluídos entre as relações clientelistas de tempos antigos. A alienação, forma de exclusão do debate político, dos mecanismos de decisão e da prática comunal, e forma de dopagem e letargia, esteve também presente desde a Antigüidade, e foi enraizada nos costumes civilizados. As ações estatais e senhoriais acostumaram há muito o povo à passividade e à inércia, alienado de qualquer iniciativa e organização própria. Se une ao clientelismo para formar a política do pão e circo. Um stadium romano e um estádio de futebol guardam naturais semelhanças. O controle sobre a construção civil e a produção são formas ainda mais brutalizadas de alienar seus verdadeiros executores em benefício das classes políticas e proprietárias. E isso não se muda através das urnas, que, se estão aí, é porque servem e interessam muitíssimo aos donos do poder, já que são estes que exercem o próprio poder.

A urna se encaixou perfeitamente nestas três práticas citadas, extremamente úteis para a manutenção das elites e do Pacto Social. O voto foi por exemplo uma forma encontrada pela burguesia liberal durante a Revolução Francesa para dizer que a Revolução, a redenção e a emancipação humana já haviam sido alcançadas. Uma forma de dizer que agora o povo seria dono de seu destino, pois estaria então decidindo sobre quem melhor o governaria. O povo é mantido alienado agora também através de uma participação ilusória. A cooptação, pela promessa de cargos públicos a pessoas influentes na sociedade, onde as relações de poder se dão em rede, e obviamente não se dão de baixo pra cima, é inerente aos processos eleitorais e sempre liderada por uma classe política que se mantém privilegiada. O controle sobre obras sociais e setores estratégicos como a produção, a saúde e a educação reforçam as práticas clientelistas, raiz ideológica da utopia do Estado generoso e provedor.

O sistema político excludente da falsa democracia doutrina para a passividade política a grande maioria, o político torna-se aquele ser capacitado para atuar neste ofício, assim como o papel que vêm tomando os economistas em decidir sobre a vida de todos. O fato é que aquele que tem a olaria por ofício toma decisões sobre a forma que dará ao barro, o pintor sobre seu quadro, e são realmente capacitados para isso e experientes, enquanto por ouro lado os políticos e economistas tomam decisões não sobre uma peça de barro ou uma pintura, mas sobre a vida de cada um de nós, como se governar fosse um ofício em que há pessoas mais capacitadas ou menos capacitadas em que estas disputariam entre si para obter a preferência eleitoral, que decidiria sabiamente. O fato de que estas pessoas tomam decisões sobre coisas que não lhes dizem respeito, e sim que dizem respeito a cada um de nós e a todos nós, lhes tira qualquer propriedade que possam ter sobre o tema. O controle de qualquer um sobre a vida de todo um povo é a maior das usuras. O sistema político desigual mantêm um falso discurso de capacidade política dos governantes, em que alguns são mais aptos para a política, outros menos, e que portanto sendo governados por alguém mais apto estaremos em melhores mãos que se organizarmos a produção, o consumo, a saúde, o lazer e a educação nós mesmos.

Há de se escolher entre a liberdade de Palmares e a liberdade da Lei Áurea. A primeira a trazemos em nossos espíritos famintos por justiça, a segunda são migalhas que jogam para nos manter escravos enquanto enganam nossa fome. Saciar-se com urnas e orçamentos irrisórios é aceitar a condição de miséria humana, política, física e criativa. Manuel Congo, Zumbi, Cunhãbeba, Aimbirê, Sepé Tiarajú, Preto Cosme, Manuel Francisco dos Anjos e todos os que lutam! Nós temos honra, temos história, pulsamos com Nhandé Sy, Nossa Mãe Terra. Choramos com as mães que choraram seus filhos, e filhos que choraram suas mães. Não vamos deixar os donos do poder nos enganar com essa agora. Vamos seguir na luta. Nenhum passo atrás. Não vamos nos vender. Não aceitamos a condição de miseráveis. Temos fome de justiça, e nos manteremos firmes em saciá-la. Ou estamos com os oprimidos, ou estamos com os opressores.

Coletivo de Estudos Anarquistas Domingos Passos, 2002