Quiseram
apagá-la da história, como os senhores sempre querem fazer
com as melhores histórias, as mais vivas, aquelas que percorrem muitos
anos em alguns poucos. Cidade e fortaleza, foi construída em uma ilha,
e foi ilhada que a quiseram manter, para derrotá-la, mas apesar dos
intentos da nova elite seu levante rebelde foi ouvido por toda a Rússia
e todo o mundo. Seu brado inspirava os trabalhadores e combatentes
das vizinhas Oranienbaum, Krasnaya Gorka, Petrogrado a erguerem-se
outra vez, e em nada adiantavam as calúnias e as mentiras do Kremlin.
De Kronstadt vinha
o ímpeto revolucionário que outra vez incendiava a Rússia. Os heróicos
marujos do Petropavlovsk e do Sevastopol levantavam outra vez seus
punhos, depois de haverem combatido decisivamente nas Revoluções de
Fevereiro e Outubro com a mesma frota construída para defender a antiga
São Petersburgo das invasões estrangeiras, e que agora lutava pelo
povo de toda a Mãe Rússia contra a opressão do Czar e da burguesia.
Defenderam ainda com suor e sangue a cidade de Petrogrado da reação
dos brancos da Entente européia e da contra-revolução czarista. Mas
seus valorosos marujos e trabalhadores dolorosamente descobriam que
haviam cedido o poder dos sovietes, o poder do povo, a uma nova classe
de opressores.
Agora eram tempos de
voltar a lutar por liberdade, tomar o poder dos sovietes novamente
para as mãos dos trabalhadores. Lutar contra a fome, contra as injustiças.
Lutar em solidariedade aos operários de Petrogrado, presos por não
se entregarem ao regime militar imposto à linha de produção das fábricas,
trancados do lado de fora das mesmas, sem ração, passando fome e frio
com as famílias, por fazerem greves contra o trabalho forçado, o mísero
salário e a anulação política. Lutar em solidariedade aos sempre revolucionários
lutadores do povo encarcerados pelos novos verdugos nas mesmas masmorras
czaristas do antigo regime, e àqueles levados aos campos de concentração
da jovem camarilha totalitária sobre o Kremlin.
Não! Os arautos da
revolução, os marujos, soldados e operários de Kronstadt não podiam
deixá-la morrer assim, pelas mãos de uma corja oportunista, uma elite
de burocratas, que usara o povo para tomar o poder, e que não o permitia
a ele decidir dentro dos próprios sovietes, levantados com o sangue
de tantos companheiros e familiares. Uma elite usurpava para si a
Revolução, uma elite que negociava com o capital estrangeiro, sem
escutar os gemidos de um povo que definha pelas ruas frias da Rússia,
nem os gritos de desespero das mães cujos filhos não tem o que comer.
Não, eles não iam deixá-la
morrer sem luta. Kronstadt, rechaçada de qualquer diálogo, a 7 de
março de 1921 entardecia aos disparos de canhões sobre o golfo. Seriam
dez dias de resistência, dez dias de martírio, lutando por dignidade,
liberdade e igualdade. São os dez últimos dias da Revolução que mudou
o mundo, os dias de seu último suspiro. Kronstadt foi o primeiro e
último bastião da Revolução Russa, e a esmagaram com mãos de ferro,
dentes de sabre, coração de chumbo e sangue do povo.
Kronstadt, a "Flor
da Revolução", foi transformada para os trogloditas de Moscou em uma
"tragédia necessária". Que classe de monstro julgaria necessária uma
carnificina de milhares de vidas? Massacre que promoveram para manter
seus privilégios de corja asquerosa e criminosa, de vultos até hoje
venerados, cujos nomes não deviam ser lembrados ou falados, mas sim
cuspidos e escarrados.
No entanto, quanto
a seus mortos, Flor do Báltico, estes são poucos os que lembram. Seus
nomes? Talvez, e apenas alguns poucos. Mas é valoroso o nome de cada
combatente. E nós podemos, e sabemos de coração, dizer uma palavra,
um nome, que ressuscita para nós as alegrias e lágrimas, prazeres
e dores, conquistas e privações daqueles bravos lutadores do povo,
um nome que em algum lugar do cosmos, seguramente, significa liberdade:
KRONSTADT, Mil vezes Revolucionária.
Coletivo
de Estudos Anarquistas Domingos Passos, Niterói, 2002 .