Não
podemos passar sem uma análise da Revolução Russa e das Contra-Revoluções
que a dissolveram, seus fracassos e vitórias, sem criticar os militantes
e ideologias envolvidas. Um primeiro passo de análise seria o processo
de construção da Revolução, e dois pontos importantes seriam a organização
de base na marinha russa e a organização de base também do operariado
especialmente através dos conselhos, sovietes, ocorrendo ambos principalmente
a partir da província de Petrogrado. Outro passo seria estudar melhor
a revolução de fevereiro, que é considerada muitas vezes de forma
extremamente simplista apenas em seu caráter burguês, não analisando
as conseqüências desta revolução em relação à perda de autoridade
da Estrutura Estatal, que a burguesia aparentemente tinha poucas forças
para manter, e em relação à ação direta promovida pelo próprio povo
através de inúmeras expropriações de campos e fábricas e da ressurgência
dos sovietes. As revoluções de fevereiro e outubro são ambas parte
de um mesmo processo que não está simplesmente protagonizado por alguns
partidos políticos, mas por uma grande reorganização social e mobilização
popular.
Devem
ser lançadas as críticas mais ferrenhas seja a Socialistas de Esquerda,
Bolcheviques, Mencheviques ou Anarquistas. Não são apenas os bolcheviques
que devem ser responsabilizados pelos rumos da revolução, mas também
muitos anarquistas, por omissão. Na Rússia desse período os anaquistas
estavam muito mal organizados, além de serem poucos, mas tinham um
campo bastante fértil. Por exemplo, o trabalho de uma meia dúzia de
anarquistas na Ucrânia, por estarem dispostos e organizados, rendeu
uma cadeia de vitórias revolucionárias pouco vistas na história. A
formação de um exército insurgente revolucionário, formado pelos próprios
campesinos e operários em armas, uma série de expropriações e de ocupações
de campos e fábricas e uma construção buscando o máximo de horizontalidade
deram tom à experiência provavelmente mais revolucionária durante
todo aquele processo.
Mas
em geral, parte significativa das tendências ácratas das organizações
populares como do operariado, do campesinato ou da marinha em momentos
de maior tensão com a Estrutura Estatal, mantida posteriormente a
outubro pelos bolcheviques, era resultado menos do trabalho de anarquistas
e muito mais do próprio desenvolvimento da luta de classes, quando
as classes trabalhadoras, conscientes de seu protagonismo, conflitavam
com os interesses de Estado dos bolcheviques, que buscavam manter
o Poder Político de decisão e da violência nas mãos de uma nova classe
dirigente. Nela figuravam Lenin, Trotsky, Stalin, Zinoviev e outros
membros do Comitê Central.
Se
tornava cada vez mais claro o conflito de interesses entre o Comitê
Central e as classes trabalhadoras. Surgia um novo conflito, uma nova
luta entre Revolução e Contra-Revolução, entre as classes trabalhadoras
e exploradas e a nova classe dirigente. A revolução de outubro, protagonizada
pelos trabalhadores, peca ao não destruir definitivamente a Estrutura
Estatal opressora, mas sim entregá-la nas mãos de seus futuros novos
carrascos.
Os
conflitos posteriores se dão claramente em dois níveis. Um conflito
de ambas partes, trabalhadores e dirigentes, contra a reação, seja
burguesa ou csarista. E outro entre as classes trabalhadoras e a nova
burocracia estatal. É importante frisar que ainda não estamos falando
de estalinismo, mas de um período em que os bolcheviques têm como
grande mentor intelectual o próprio Lênin, tão idolatrado até os dias
de hoje.
Outra
figura desse período que até hoje se mantêm por traz de uma máscara
é um dos grandes responsáveis pela formação da polícia secreta russa,
a Tcheka, e é mais conhecido como León Trotsky. Uma de suas façanhas
foi formar o exército vermelho, que tão bravamente lutou contra a
reação dos brancos. Com essa mesma façanha criou a estrutura interna
militarizada, policialesca e alienante que permitiu a parte significativa
do mesmo exército se jogar contra o próprio povo.
Foi
com esse mesmo braço armado sem cérebro próprio, mas com o cérebro
de um Comitê Central, obviamente alheio aos anseios populares, que
Trotsky reprimiu os operários de Moscou, Petrogrado, e a Terceira
Revolução, verdadeiramente operária, em Kronstadt, e operários de
outras grandes cidades que lutavam pelo direito ao pão e por participar
e decidir dentro dos sovietes que eles mesmos criaram, e que agora
eram dominados militarmente pelos bolcheviques. Foi assim que reprimiu
os marinheiros que lutavam pelo direito de apontar os próprios oficiais,
revogáveis, e que agora o Comitê Central queria apontar. Foi assim
que reprimiu as organizações camponesas que lutavam por autonomia,
igualdade, terra e liberdade. Foi assim que derrotou a Revolução na
Ucrânia.
A
crítica e auto-crítica se impõem. A crítica segue pela tomada e manutenção
da Estrutura Estatal, fundada sobre o monopólio do poder e da violência,
fundada sobre a manutenção da estrutura histórica de opressão e portanto
de desigualdade, oferece todas as condições para a Contra-Revolução.
A ideologia fundada sobre a tomada do poder estatal se coloca em cheque,
tanto na teoria como na prática. Na teoria a trágica profecia de Bakunin,
quanto à manutenção de um Aparato Estatal prevista por Marx como um
passo rumo à Revolução Social, mas que Bakunin acusa como um passo
contra-revolucionário, que cria uma nova sociedade de classes. Bakunin
defende a destruição total do Estado, sendo a Revolução Social levada
até o fim. Na prática, através da experiência bolchevique, e a formação
real e sinistra de uma nova sociedade de classes, de uma enorme renovada
diferença social, e de uma opressão tão nefasta quanto a de outros
regimes totalitários contemporâneos. Parte significativa da política
no mundo se vê entre duas opções, ambas abomináveis, o capitalismo
e o totalitarismo. Não existem totalitarismos de esquerda e direita,
ambos são extrema-direita se utilizamos esse tipo de classificação,
assim como o sistema capitalista.
A
auto-crítica segue em relação à derrota dos partidários da Revolução
Social construída pelo próprio povo, sejam eles elementos anarquistas,
entre os quais muitos se omitiram quanto a construção de uma alternativa
política aos bolcheviques, ou os movimentos sociais que protagonizaram
todas as experiências revolucionárias na Rússia, mas que entregaram
o ouro ao bandido. Procurando a crítica e auto-crítica no sentido
construtivo podemos nos utilizar de referências práticas e teóricas.
Em
relação ao anarquismo o fracasso da revolução gera uma série de debates
em todo o mundo em torno da auto-organização como única forma de libertação
do povo da tirania e da desigualdade. Algumas referências tanto teóricas
como práticas são a Plataforma dos Comunistas Libertários, as obras
de Nestor Makhno, de Errico Malatesta, e as experiências da FAI e
principalmente da Coluna Durruti durante a Revolução Espanhola.
No
sentido dos Movimentos Sociais a referência segue pela histórica luta
por autonomia e democracia direta. A derrota dos sovietes como instrumentos
revolucionários se deu através do apoio que deram operários, marinheiros,
soldados, artesãos e camponeses a uma direção externa no momento em
que mais necessitava garantir sua direção própria, construída pelo
próprio povo. A história se repete posteriormente em relação aos sindicatos,
em que muitos perdem seu caráter revolucionário com a ascenção do
populismo e dos Partidos Comunistas alinhados à URSS em todo o mundo.
Para
terminar, a teoria e a prática revolucionária não podem ser obra de
um pequeno grupo se o que se pretende é a Revolução Social. A Revolução
Social não é uma revolução para a minoria, e sim, para todos que desejam
o comunismo e a liberdade, elementos fundamentais para a justiça social,
e portanto, deve ser obra dos mesmos. O Socialismo só pode ser alcançado
se construído pelo próprio povo.
Coletivo
de Estudos Anarquistas Domingos Passos - Niterói, Novembro de 2001