Anarquismo e Feminismo
As
novas formas de "relações conjugais" e de
"relações domésticas" sugerem um novo
modelo de feminilidade: o da "mulher liberada", segundo
um tipo de liberação que convém a economia capitalista
e as políticas dos Estados governantes.
O
princípio básico desta feminilidade é a igualdade
na diferença. De um lado, as mulheres adquiriram os mesmos
direitos e deveres que os homens, no que diz, respeito ao matrimônio,
a família ao trabalho e à vida política social.
Do outro lado, as diferenças específicas homem - mulher
devem e precisam ser preservadas.
Esta
especificidade refere-se a toda uma série de características
físicas, intelectuais e emocionais que são consideradas
típicas da natureza feminina. No entanto, tal conceituação
de feminilidade não mais eficiente para descrever a mulher
no mundo atual Antes, impõe e estabelece um novo estereótipo
normatizado e normalizado da mulher.
Os
componentes clássicos da mulher submissa eram: heterossexualidade,
passividade, narcisismo e sentimentalismo. Hoje, os componentes básicos
da mulher liberada camuflam os anteriores e adaptam a mulher às
características deste novo ser emergente: individualismo, autonomia,
força, autocontrole, eficácia e racionalidade.
Não
obstante as suas contradições, este modelo e mulher
justifica psicologicamente e permite socialmente ao mesmo tempo a
relação conjugal, a maternidade e, na esfera das relações
econômicas, a divisão do trabalho com o homem.
No
contexto político, a feminilidade é objeto de negociações
de todo tipo entre os movimentos feministas e as instituições
que produzem, difundem e inculcam ideologias nas sociedades modernas:
o Estado, os meios de comunicação e o meio cultural.
O
modelo da "mulher liberada" é, basicamente, o reflexo
das relações de poder entre esses dois agentes: Os movimentos
feministas e os Estados governantes. Este novo modelo de feminilidade
não só torna possível formas "avançadas"
de opressão sobre a "mulher liberada", como também,
constitui o fator - chave da reversibilidade do movimento de liberação
feminina, enquanto movimento cooptado pelo Estado.
A
história das mulheres é uma história de avanços
e recuos. Em certos períodos históricos, as mulheres
adquiriram direitos formais e informais que, em outros períodos,
foram perdidos. Por outro lado, outros foram conquistados, de maneiras
diversas e em contextos diversos, e assim por diante.
Toda
mudança econômica, social e política relevante
implica em conseqüências positivas ou negativas para as
mulheres. Melhorias em sua condição são sempre
fruto de uma mobilização ativa, inserida na contradição
dessas mudanças.
A
ideologia da feminilidade reflete a variação, no tempo,
de uma essência mantida imutável: "o eterno feminino".
A eficácia do feminismo, a curto e a longo prazos, depende,
em grande parte, da capacidade das mulher em impedir a formação
e a institucionalizacão de novas variantes do "eterno
feminino", mesmo que venham apresentadas como parte integrante
do processo de liberação da mulher.
O
potencial de força das mulheres somente poderá ser mobilizado
e usado em favor de sua verdadeira liberação, se o movimento
feminista trilhar um caminho verdadeiramente revolucionário.
Em outras palavras, se optar por uma mudança da ordem social
e não na ordem social.
O
anarquismo oferece instrumentos de organização e de
luta revolucionária capazes de tornar realidade o potencial
subversivo do feminismo.
Em
sua origem, o feminismo representou um sério golpe nas estruturas
de poder, em sua forma mais elementar e básica: o controle
interpessoal, no jogo recíproco de força e consenso.
Mas
a força do protesto feminista pode-se voltar contra as mulheres,
se, em sua luta contra a dominação, decidirem aliar-se
às instituições detentoras de poder: os partidos
políticos e os aparelhos de Estado.
O
Estado tornou-se (ou foi convertido em) interlocutor privilegiado
do movimento feminista moderno, desde seu surgimento, e de forma cada
vez mais íntima. Em seu diálogo com o Estado, o movimento
das mulheres, ao formular suas reivindicações principais,
terminou por assimilar-lhe a linguagem.
Dessa
forma, adquiriram elas direitos que o Estado pode garantir, reformas
que o Estado pode realizar e recursos que o Estado pode distribuir.
Ainda
o Estado apresenta-se como agente garantidor de mudanças em
esferas privadas que ele (Estado) não pode realizar diretamente,
coma no caso de relações sexuais e afetivas homem –
mulher.
Da
mesma maneira que a movimento operário, especialmente em suas
formas sindicais institucionalizadas, o movimento feminista é,
a todo momento, levado a negociar com o Estado. Por sen turno, o movimento
feminista dispõe-se a esse tipo de negociação
porque lhe parece que somente esta forma mostra-se capaz de impor
respeito a maridos, patrões, pais, concidadãos, colégios,
dirigentes de todo tipo, intelectuais, etc.
Essa
interação movimento feminista - Estado é coerente
com a lógica dos sistemas sociais vigentes. De fato, a função
principal do Estado moderno é expressar e neutralizar as tensões
e os conflitos causados por atritos entre sujeitos sociais, especialmente
as relativos a classes sociais e sexos.
Todo
movimento de protesto, a qualquer nível de luta, é necessariamente
remetido ao Estado. E este dispõe dos recursos e mecanismos
necessários para neutralizá-lo. Pode e tem reprimido
protestos com o uso da violência, mas também tem e pode
determinar realizar modificações funcionais do sistema,
com vistas a reduzir as tensões, sem comprometer a sua autoridade
e perpetuação.
A
história do movimento operário, das lutas raciais, dos
movimentos estudantis oferecem uma farta ilustração
de como opera o mecanismo estatal de controle nas Sociedades modernas.
Sem
dúvida, as mulheres obtiveram, sobretudo por parte do
Estado,
o reconhecimento de certos direitos e melhorias parciais de sua condição.
Na maior parte dos casos, estas vitórias das mulheres tornaram-se,
também, vitórias do Estado, na medida em que significaram,
em certa medida, um aumento da capacidade do Estado de controlá-las
e a seu movimento.
Alguns
organismos instalados a nível governamental têm toda
a aparência de mecanismos permanentes de controle sobre as mulheres
e seu movimento, como, por exemplo, comitês, comissões,
institutos montados para estudar a mulher, formular soluções
para seus problemas e, até, para montar e implantar projetos
feministas.
Estes
organismos e instituições multiplicam-se e proliferam
em sociedades nas quais a movimento feminista tem provocado fortes
impactos e possui articulações regionais e internacionais.
A
despeito dessa interação, as relações
mulheres - Estado estão longe de ser harmoniosas. Isso porque
a Estado não resolveu - e nem pode resolver - as contradições
que alimentam a revolta e a resistência das mulheres. Se, por
um lado, oferece-se como um interlocutor e lhe fornece canais legais
de reivindicações, por outros neutraliza seu potencial
revolucionário e corrói seu potencial de libertação.
0
movimento feminista proclama, como principio, que o privado é
político. Séculos de opressão demonstram que
a afirmação é verdadeira sob todos as seus aspectos.
É
chegado o momento, no entanto, de uma predominâcia da esfera
privada sobre a pública. A primeira é vida e desejo.
A segunda é ordem e imposição. Imposição
que sempre vem sob a camuflagem de ajudar o desejo, desejo que é
sempre posto a serviço da ordem. Porque se trata, aqui, daquele
desejo que a ordem programou e daquela imposição que
o desejo previu e a ela se sujeitou.
Para
subverter este sistema, é necessário superar a linha
imaginária que se construiu entre esfera pública e esfera
privada. São duas faces da mesma moeda: a Estado - família
e a família - Estado.
É
necessário liberar a consciência para o fato de que,
neste âmbito de solidão e luta, a moeda corrente é
o controle.
Além
de outras formas que devem ser liberadas, está aquela a que
me referi no inicio - a feminilidade – e tal só pode
ser feito se entendermos que é o poder que a produz e que são
as mulheres as suas prisioneiras.
Nicole
Laurin-Frenette
Professora de Sociologia na Universidade de Montreal
Membro do Instituto Anarchos,
Montreal Canadá,
in "Volontà", no. 4, 1982.
revista anarquista trimestral
editada na Itália