A história
oficial pouco ou nada se ocupa de rebeldias indomáveis, de
pensamentos audazes e de mulheres livres, muito menos de alguém
que reuna essas três condições. esse o caso dessa
extraordinária mulher, cujas idéias lúcidas,
propostas de ação e exemplo de vida seguem tendo pleno
valor para aqueles/as que aspiram à liberdade e à igualdade.
O
relato da vida de Flora Tristán ( 1803 - 1844) está
cheio de circunstâncias que parecem ter sido arrancadas das
novelas românticas tão ao gosto daquela época.
Nasceu em Paris, filha de um aristocrata peruano e de uma plebéia
francesa que havia imigrado para a Espanha. Com as guerras napoleônicas
e a morte do pai, em 1808, a família de Flora inicia uma etapa
de pobreza, mitigada pela ilusão do futuro acesso a fortuna
paterna, quando pudessem viajar para a América.
Em
1820, as necessidades se impõem e Flora vai trabalhar como
operária de uma oficina de litografia, cujo jovem proprietário
- André Chazal - se apaixona por ela. Para fugir da miséria
e submetida à pressão materna, Flora casa-se em 1821,
gerando dois filhos e uma filha – Aline - que veio a ser mãe
do famoso pintor Paul Gauguin. Em 1826, Flora já não
suporta aquela união sem amor e convencional, abandonando o
lar e iniciando uma dura disputa legal e pessoal, que se prolongará
por 12 anos, até que Chazal quase a mata, sendo condenado a
20 anos de trabalhos forçados. Essa vivência será
um estímulo para que aflore um pensamento e uma ação
que serão referências importantes para o movimento feminista.
Flora foi uma figura única, que denunciou com a mais sentida
sensibilidade os padecimentos da mulher de seu tempo, planteando reivindicações
que continuam sendo atuais.
Em
1833-34, Flora viaja ao Peru para buscar a herança de seu pai,
sendo recebida friamente pelos parentes, que lhe concedem somente
uma modesta pensão anual. Retorna a Europa reafirmando suas
convicções igualitárias radicais, que vem amadurecendo
desde 1825, com a leitura de autores como Saint-Simon, Aurora Dupin,
Fourier, Considerant e Owen, além de seus contatos diretos
com o movimento operário na França e na Inglaterra.
Em
1835, publica seu primeiro folheto, dedicado à situação
das mulheres estrangeiras pobres na França; em 1837, sai o
segundo, em prol do divórcio; em 1838, são publicados
os dois volumes de seu diário de viagem a América, sob
o título de Peregrinações de uma Pária.
Esta obra dá a Flora grande renome nos meios literários
parisienses, reafirmado meses depois com a novela Mephis ou O Proletariado,
que a eleva a categoria de rival da célebre George Sand. Ao
mesmo tempo, Flora aprofunda seu compromisso ativo com as lutas sociais
mais radicais de então. Primeiramente, pela emancipação
da mulher e da classe operária, mas também contra a
pena de morte, o obscurantismo religioso e a escravidão.
Como
que pressentindo a morte próxima, os anos posteriores a 1840
encontram Flora Tristán na plenitude de seu trabalho e pensamento.
É então que escreve A União Operária (1843)
e A Emancipação da Mulher(inédito até
1846), obras que marcam sua maturidade intelectual e política.
Realiza por toda a França a tarefa de organizar essa União
Operária, que recorria à experiência inglesa das
Trade Unions, ainda que com ênfase internacionalista e socialista
radical. Tais ações justificam a apreciação
de quem vê em Flora a esquecida e grande precursora da I Internacional,
como seu biógrafo peruano L. A. Sánchez, que afirma:
"Aquela Associação Internacional dos Trabalhadores
era a velha União Operária, ampliada, ecumênica
e viril (...) Ninguém lembrou da precurssora na célebre
assembléia de Albert Hall. Mas ela, com seu pensamento e exemplo,
a esteve presidindo desde longe, desde a eternidade. Talvez, se com
alguém se identificava mais seu espírito, era com o
de um certo homem de barbas revoltas e verbo ardente, que costumava
discordar vigorosamente de Marx: Miguel Bakunin".
Sofia
Comuniello,
extraído da revista Correo A, n° 26, set/94, Caracas, Venezuela.
Traduzido e adaptado pelo Coletivo de Tradutores do CEL.
Libera #44,
janeiro de 1995