Artigo
publicado na Revista Sinpro Cultura - caderno de cultura do Sindicato
dos Professores de Campinas e Região, ano XII, nº 23,
julho/95, caderno especial "Para Debater".
Lembro-me
de uma passagem de um texto de Félix Guattari na qual ele comenta
um fato curioso para o exercício cotidiano de nossa função
de educadores. Toma a situação hipotética de
um aluno que esteja na sala de aula e, em lugar de prestar atenção
à nossa maviosa explicação, começa a cutucar
o colega do lado, a jogar pelotas de papel nas meninas e tudo aquilo
que conhecemos bem. Qual é normalmente a reação
do professor? Guattari diz que pode ser de variados tipos: um professor
autoritário coloca o aluno de castigo, ou manda-o para fora
da sala - rompendo, assim, com qualquer relação pedagógica
possível -; já um professor mais progressista vai preocupar-se
com a reação do aluno e tentará compreendê-la,
para ajudá-lo: o encaminhará ao psicólogo da
escola etc. Entretanto, muito dificilmente nosso professor em questão
terá o estalo de imaginar que o que aquele aluno "relapso"
está fazendo é, nada mais, nada menos, do que aquilo
toda a classe faria, se tivesse coragem para tanto! Em outras palavras,
professor algum pensará que o problema é seu, e não
do aluno, que é sua aula que não está agradando
a ninguém, que seu trabalho precisa ser repensado se pretende
ser uma atividade realmente educativa.
Fiz
este preâmbulo para entrar numa questão que sei ser polêmica,
mas que penso que devemos encarar por outros pontos de vista. O governador
do Estado de São Paulo, logo após sua posse, anunciou
que pretende acabar com a reprovação entre as séries,
como forma de diminuir a evasão escolar e os baixos índices
de escolaridade e aproveitamento. Do mesmo modo, em seu segundo pronunciamento
à Nação, em sete de fevereiro, o presidente Fernando
Henrique Cardoso abordou a questão da repetência e da
evasão escolar, tentando demonstrar que, pelos investimentos
feitos na área, estes índices precisariam ser sensivelmente
diminuídos.
Sem
dúvida alguma, os discursos dos políticos sobre a educação,
assim como suas promessas, precisam ser discutidos, esclarecidos,
suas lacunas precisam ser denunciadas, assim como seus erros devem
ser apontados. Haveria muito o que discutir acerca do pronunciamento
de Fernando Henrique, como as falácias de sua argumentação
sobre o investimento e sua fiel defesa dos princípios do Plano
Decenal de Educação para Todos, que a UNESCO e o Banco
Mundial estão fazendo com que desça goela abaixo de
todos os países latino-americanos - o caso do Chile é
paradigmático, e deveríamos estudá-lo a fundo
- mas este não é meu objetivo neste momento. Limito-me,
por ora, à questão da repetência e da evasão.
Pareço
ouvir nitidamente o choramingo dos colegas professores de primeiro e
segundo graus! Lembro-me de quando professor no ensino médio
e fundamental, tanto no sistema público quanto no privado, as
posições eram indistintamente as mesmas. Qualidade de
ensino é sinônimo de reprovação. O professor
que aprova a todos, ou a grande maioria de seus alunos, não é
exigente, é negligente, não avalia corretamente etc. O
fato de o aluno poder entrar com um recurso contra a sua reprovação
é um democratismo demagógico e um duro golpe num ensino
sério etc. Todos vocês, que por ventura estejam me lendo,
conhecem muito bem essas afirmações, se é que não
concordam absolutamente com elas. É por isso que proponho que
as discutamos mais a fundo, muito mais a fundo.
Por
detrás da questão da qualidade do ensino, está
uma muito mais complexa, a da relação de poder no ato
pedagógico. Esta foi a razão que me fez abrir estas
reflexões com aquele exemplo levantado por Guattari. Quando
um aluno é indisciplinado em sala de aula, vamos tentar entender
o que se passa com ele, quando simplesmente não o isolamos
por completo mas, apenas muito raramente, vamos tentar entender o
que se passa conosco, rever nossa metodologia, rever os conteúdos
que estamos ensinando, buscando uma ação pedagógica
verdadeiramente significativa, tanto para nós, educadores,
como para os alunos. Do mesmo modo, quando um aluno repete de ano,
quando abandona a escola e este problema nos toca de forma direta,
vamos nos debruçar para tentar encontrar e entender o problema
do aluno, mas nunca pensamos que o problema possa ser nosso! Ou, como
disse o Fernando Henrique em seu pronunciamento, quando alcançamos
o índice de repetência e de evasão que temos hoje,
não pode ser aquele imenso contingente de alunos que está
errado, mas é a escola que deve estar errada.
Mas
afirmei que por trás disto está a relação
de poder. A equação saber é poder é
bastante conhecida, embora Michel Foucault tenha tido a ousadia de
afirmar que o poder produz saber, assim como o inverso também
é verdadeiro, o que, no final das contas, não invalida
a equação, apenas a amplia ainda mais. Ora, na sala
de aula o professor é aquele que sabe; é, portanto,
a autoridade, o local do poder. Devemos nos lembrar de que, nas antigas
salas de aula, o mestre ocupava o púlpito; mesmo hoje, ainda
temos algumas salas de aula em que o espaço do professor é
um tablado, mais elevado do que o espaço dos alunos. Embora
explicações didático-pedagógicas sejam
sempre possíveis, é inegável e incontestável
seu caráter ideológico e político - no sentido
do exercício do poder. Algumas cenas do filme The Wall,
dirigido por Allan Parker e baseado num álbum da banda inglesa
Pink Floyd são mais do que emblemáticas a esse respeito.
As
ditas pedagogias novas - escola nova e construtivismo, por exemplo
- tentaram e vêm tentando esvaziar esse poder do professor,
colocando o aluno como centro do processo e o professor como um auxiliar
(ou facilitador etc. - os termos variam de autor para autor) do processo
de ensino-aprendizagem, o que Régis de Morais chamou de "revolução
copernicana no ensino". Nossa prática quotidiana nas escolas
mostra, porém, que tal revolução não vingou.
Pode ter diminuído a prepotência de alguns mestres e
certamente diminuiu a ação de todos, mas não
esvaziou de poder o professor, devido, sem dúvida alguma, à
surda e calada resistência dele, que agarrou-se a essa autoridade
conferida pelo saber como os ditadores perseguidos agarram-se às
suas fortunas depositadas em bancos suíços.
A
questão ganha, hoje, contornos ainda mais complicados. A aguda
crise da educação fez com que os professores fossem
gradualmente perdendo seus salários e seu status social.
Ser professor hoje é ser um pária; vivemos uma situação
quase pior do que a do pedagogo grego, que não passava
de um escravo. O professor hoje quer e precisa, portanto, assegurar
o mínimo que lhe resta de dignidade, e acontece que o que sobra
de tal dignidade é o fato de ele ser, pretensamente,
aquele que sabe. Faço questão de frisar o pretensamente,
dado que todos sabemos qual é o nível da formação
acadêmica de muitos dos que, por uma razão ou por outra,
pretendem ser professores.
É
por isso que dificilmente se aceita discutir, nas salas de professores,
a questão da repetência e da evasão. Parece que
estão querendo, uma vez mais, jogar a culpa do fracasso sobre
nós, tirando-nos o último traço de dignidade
que nos resta. Só que, para que sejamos realmente dignos, devemos
assumir, sim, a nossa parcela nessa culpa. E temo que ela não
seja pequena...
A
educação tem sempre se valido dos mecanismos de controle.
Se existe uma função manifesta do ensino - a formação/informação
do aluno, abrir-lhe acesso ao mundo da cultura sistematizada e formal
- há também funções latentes, como a ideológica
- a inserção do aluno no mundo da produção,
adaptando-se ao seu lugar na máquina. A educação
assume, desta maneira, sua atividade de controle social. E tal controle
acontece nas ações mais insuspeitas.
Foucault
denunciou os mecanismos mais explícitos da escola, quando traçou
em Vigiar e Punir os paralelos desta instituição
social com a prisão. Mostrou que a estrutura física
e arquitetônica da escola está voltada, assim como na
prisão, para a vigilância/controle de seus alunos/prisioneiros.
São muitos os olhos que sentimos sobre nós, o que introjeta
o controle e faz com que nós próprios nos vigiemos.
Mas o filósofo francês também apontou outros mecanismos
da escola muito menos explícitos, como a disciplinarização.
Há dúzias de argumentos pedagógicos para explicar
a razão de o conhecimento estar dividido em disciplinas: facilita
o acesso/compreensão do aluno etc. etc. Mas, por detrás
disso, paira o controle: compartimentalizando, fragmentando, é
muito mais fácil de controlar o acesso, o domínio que
os alunos terão e também de controlar o que eles sabem.
Lembremos do sábio conselho do general romano: "dividir
para governar".
Outro
aspecto deste termo ambíguo não por acaso, a disciplinarização,
diz respeito mais diretamente à questão do poder. A
escola é o lugar da disciplina, de seu aprendizado e de seu
exercício. Não vai longe o tempo em que os alunos faziam,
nos pátios das escolas públicas, antes de entrar em
aula, exercícios de ordem unida, como recrutas num quartel,
e acredito que em alguns lugares isso ainda seja prática comum.
A disposição de carteiras numa sala de aula, por outro
lado, visa também à disciplinarização
dos alunos e uma melhor possibilidade de controle por parte do professor,
que domina geopoliticamente a classe, percebendo seu mapa geográfico
e podendo armar uma estratégia/tática de aula. Mesmo
no caso das pedagogias novas, que rompem com o tradicional enfileiramento
das carteiras, permanece uma forma implícita de o general dispor
seu exército no campo de batalha da sala de aula. Em outras
palavras, a sala nunca é um caos, com os alunos ocupando o
espaço desordenadamente, mas há sempre uma ordem implícita
que, se visa a possibilitar a ação pedagógica,
traz também consigo a marca do exercício do poder, que
deve ser sofrido e introjetado pelos alunos.
Um
terceiro e último aspecto é o que nos interessa mais
de perto. Para disciplinarizar e controlar a escola faz uso do mecanismo
da avaliação, também recoberto de mil argumentos
didático-pedagógicos, mas outra marca indelével
do poder e do controle. Ora, dirão alguns, como educar se não
tivermos um feedback dos alunos, só possível
através dos mais diversos mecanismos de avaliação,
para reorganizarmos continuamente o processo pedagógico? E
terão toda a razão. Mas, por outro lado, também
não podemos deixar de reconhecer que a única forma que
a burocracia escolar encontrou ao longo dos séculos para materializar
os resultados de tais avaliações foi a sua quantificação
em termos de notas e, modernamente, de conceitos que, no fundo, nada
mudam, mas continuam classificando e quantificando. Se deixarmos de
lado o caráter desprezível desta quantificação
em nome de sua absoluta necessidade, não podemos negar que
ela acaba servindo como instrumento de poder. O professor é
aquele que tem o poder de dar a nota e, assim, aprovar ou reprovar
o aluno.
Já
no início deste século os pedagogos anarquistas rejeitavam
a realização de provas, exames e a atribuição
de notas aos alunos, denunciando o caráter eminentemente político
e dominador desta empreitada. É exatamente esta questão
que está por trás da resistência dos professores
em aceitar abdicar de seu poder de avaliar. Avaliar é decidir.
Decidir é dominar. Dominar é ter poder. Não temos
um salário digno, perdemos nosso status e, o que nos
resta e ao que nos agarramos com firmeza é o nosso poder de
decidirmos sobre a vida dos alunos e, assim, dominá-los. Não
importa se minha aula é chatíssima, se o conteúdo
que "ensino" não é nem um pouco significativo.
Como vou dar uma nota ao aluno, aprovando-o ou reprovando-o, ele é
obrigado a assistir a aula. Como se assistir a toda e qualquer aula
fosse o critério absoluto para uma educação de
qualidade...
Reafirmo
que a questão é polêmica. Num artigo pequeno e
brilhante, Gilles Deleuze afirma que estamos transitando das sociedades
disciplinares analisadas por Foucault - que deram origem à
prisão e à escola como conhecemos hoje - para as sociedades
de controle, que certamente engendrarão novas instituições,
assim como provocarão agudas transformações nas
que conhecemos. Demonstra o filósofo que a característica
básica destas sociedade é dar a ilusão de uma
maior autonomia mas, mesmo por isso, serem muito mais totalitárias
que as anteriores. Por exemplo, hoje não preciso ir à
agência bancária, pois controlo minha conta por telefone,
fax ou microcomputador; pareço, por isso, ter uma autonomia
muito maior. Porém, a facilidade do acesso informatizado permite
aos governos que eu seja vigiado muito mais de perto, e o que é
pior, na maioria das vezes sem nem ao menos suspeitar disso!
É
claro que a escola não fica de fora nessa nova onda social.
Nesse artigo publicado em 1990 Deleuze aponta rapidamente algumas
transformações pelas quais ela deve passar:
"No
regime das escolas: as formas de controle contínuo,
avaliação contínua, e a ação da
formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente
de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da
‘empresa’ em todos os níveis da escolaridade."
Notaram
algo parecido com o discurso de Fernando Henrique citado no início?
Não, não é mera coincidência. As reformas
propostas pelos governos estadual e federal não são
movidas apenas por um desejo e uma necessidade de uma educação
de qualidade; ou, dito de outra maneira, o paradigma de qualidade
assumido por eles é o da qualidade total, este totem
do neo-liberalismo que insiste em instaurar uma nova ordem mundial,
sob seu absoluto e transparente controle. É assim que se propõe
a avaliação contínua, a formação
permanente, a parceria com as empresas e estes mecanismos para melhorar
a qualificação do operariado brasileiro, a diminuição
dos índices de reprovação e evasão escolar.
É preciso que se mostre ao mundo que o Brasil é um país
capacitado, apto a andar de mãos dadas com a modernidade! Mesmo
que a modernidade signifique mais controle, e uma subserviência
ainda maior...
Sim,
este discurso precisa ser denunciado e criticado. Mas simplesmente
não podemos fazê-lo com as armas velhas! Não podemos
apontar uma adaga para combater um míssil com ogiva nuclear!
Se quisermos fazer uma oposição séria e conseqüente
ao discurso oficial, continuando na luta por um sistema de ensino
sério, competente e verdadeiramente de qualidade, devemos buscar
uma nova tática, que implica em que assumamos nossos erros.
Devemos
começar por abdicar ao discurso do poder. Não podemos
defender a rigidez do sistema de notas/avaliação que
culmina na reprovação, pois subjaz a ele nosso sádico
desejo de poder despótico, que é o mesmo que move as
ações oficiais. Se a tônica do momento é
a avaliação contínua, o acompanhamento do aluno
sem sua reprovação por entre as séries, podemos
fazer dessa ação pedagógica uma ação
verdadeiramente educativa, contribuindo de fato para com a formação
dos seres humanos que encontram-se quotidianamente conosco em nossas
salas de aula.
Negar
o passado não é a melhor forma de encarar o futuro, mas
agarrar-se a ele tampouco possibilita um presente satisfatório.
As maiores batalhas foram vencidas pelos exércitos que souberam
aproveitar-se das armas do inimigo, voltando-as contra ele próprio.
Penso que essa deva ser nosso caminho. Assumindo com humildade nossos
erros históricos e a disposição de superá-los,
podermos construir, de fato, a escola que queremos.
Sílvio Gallo
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