A Pedagogia Anarquista Brasileira

Paulo Carrão

A revista A Vida era uma publicação mensal de Filosofa libertária que existiu no Brasil de Novembro de 1914 a Maio de 1915. Saíram 7 número: da revista e o grupo que a produzia se dispersou logo depois. Apesar da existência efêmera, a sua importância foi significativa.

Esta revista pode ser considerada como uma das primeiras no Brasil a se preocupar com a formação ideológica e com a consciencialização da classe trabalhadora. Os editores desta publicação também se preocupavam com a organização concreta da classe operária e incentivavam as suas lutas do dia a dia os seus sindicatos.

Foi uma revista não-sectária, aberta, chegando a publicar obras escritas por religiosos que atacavam o sindicalismo revolucionário. Nela aparecem artigos contra a guerra e o imperialismo, sobre o internacionalismo, sobre a questão da mulher, preocupa-se com a história dos primeiros núcleos de trabalhadores organizados no país e discute com o positivismo, através de interessante polêmica com Teixeira Mendes, um dos "papas" desta filosofia no Brasil.

A revista A Vida também canalizou energias para a reflexão sobre a educação e esta preocupação educativa perpassa grande parte de artigos e seções da revista. A seção que aparece a partir do segundo exemplar denominada Leitura que recomendamos - O que todos devem ler é um bom exemplo da preocupação da revista com a formação intelectual dos militantes anarquistas.

Nesta seção aparecem referências a vários livros, folhetos e jornais libertários, livros como os de Kropotkin, Jean Grave, Neno Vasco, Eliseu Reclus, Sébastien Faure e vários outros autores importantes. É interessante notar que na lista de obras relacionadas como recomendadas aparecem O Capital de Karl Marx e Assim Falava Zarathustra de Nietzsche, o que vem demonstrar a abertura intelectual destes libertários brasileiros do início do século.

Nesta mesma seção aparece também a referência aos livros do educador libertário português Adolfo Lima. Os exemplares citados são: O contracto do trabalho; O ensino de História (um volume de 63 páginas); O teatro na escola (um volume de 32 páginas) e Educação e Ensino (Educação integral). Estes livros divulgaram várias noções sobre a educação libertária e devem ter sido lidos; pelo menos, por uma dúzia, de anarquistas no início do século.

Estes brasileiros que, orientados pela Filosofia socialista revolucionária, refletiram sobre a realidade brasileira e propuseram soluções baseadas nos interesses dos trabalhadores podem ser considerados como uns dos primeiros intelectuais orgânicos dos subalternos do Brasil.

A revista mensal A Vida apresentou três artigos escritos especialmente sobre o tema educação. São os seguintes: "As escolas e sua influência social - o ensino oficial e o ensino racionalista" (PENTEADO, João, dez. 1914); "A instrução e o Estado" (LIMA, Efren, Jan. 1915); "A escola - prelúdio da caserna" (PINHO, Adelino de. , mar. 1915). Existe também uma série de textos de José Oiticica denominada O desperdício da energia feminina onde, tratando da questão da mulher na sociedade capitalista, o autor escreve sobre o papel das mães na educação dos seus filhos.

O artigo de João Penteado mostra a importância da escola para manutenção ou mudança da hegemonia da ideologia burguesa. A classe dominante tem claro que é nas escolas "que reside o segredo da força mantenedora dos preconceitos patrióticos, da convenções sociais, das superstições e dos dogmas religiosos" (PENTEADO, J. A Vida, n. ° 2, dez. 1914, p. 8). Por isso, o Estado e a Igreja disputam o controle da instrução do povo e têm o objetivo de formar mentalidades adaptadas aos seus interesses de classe. É nas escolas oficiais do Estado e nas escolas confessionais que se amoldam e se mutilam as consciências das classes populares. Nestas escolas se cultiva e se cultua a atrofia da razão e são infiltradas nas crianças das classes subalternas as mentiras patrióticas e religiosas.

A burguesia, através do Estado capitalista, cria portanto a subordinação intelectual no sentido desenvolvido por António Gramsci. Subordinação intelectual é um conceito utilizado por este pensador para apresentar a sua visão da dimensão ideológica da dominação de classe na sociedade capitalista.
No pensamento gramsciano a dominação do capital sobre o trabalho, que resulta na exploração das classes subalternas, é o momento da dominação econômica. Existe também uma dominação político-ideológica que se faz pela repressão (exército, policia, prisão, etc.) e/ou pela dominação ideológica (consenso social que é expresso pela aceitação, pela maioria da população, da direção que a classe dominante dá à sociedade). Os socialistas libertários em geral percebem esta importante faceta da dominação burguesa. É através das escolas oficias estatais e das escolas confessionais que se generaliza a dominação ideológica capitalista.

Para Gramsci, a dominação dos subalternos acontece por dois fatores essenciais: o primeiro é a interiorização da ideologia dominante pelas classes subalternas e o segundo é a ausência de uma visão de mundo coerente e homogênea por parte desta mesma classe. Na teorização e na prática anarquista eles enfrentam estes dois problemas. Para solucionar o primeiro, que explica a participação massiva dos trabalhadores nos combates da 1' Guerra Mundial, os libertários
propõem a denúncia da ideologia burguesa, veiculada através das escolas do Estado e da Igreja e implementam a criação das suas escolas anarquistas e/ou racionais e/ou modernas, que apesar de modestas, travarão o combate para a criação de uma ideologia proletária, que proporcionará à classe subalterna uma visão de mundo coerente e homogênea que desencadeará a luta pela criação e desenvolvimento da sociedade acrata.


A burguesia procura monopolizar a instrução popular para evitar "o progresso das idéias novas que levam os trabalhadores à revolta, à luta, à guerra contra todas as explorações do homem pela homem, contra todas as injustiças, contra todos os privilégios sociais." (PENTEADO; idem, ibidem).

A classe dos capitalistas, por meio da escola oficial estatal, procura, através de um premeditado e constante trabalho, inocular na juventude popular a sua ideologia. O autor exemplifica citando a 1° Guerra Mundial, em que a escola incentiva o patriotismo e o militarismo preparando a juventude para aceitar naturalmente o derramamento de sangue, o saque e a devastação de cidades que esta guerra trouxe.

João Penteado, sintonizado nos ideais libertários, propõe como alternativa à escola oficial estatal a criação de escolas racionais. Estas escolas "excluem de seu programa todos os preconceitos patrióticos e religiosos, tendo sempre em mira, antes de tudo, a educação e a instrução da infância de acordo com a razão e com a verdade das cousas que constituem o objetivo principal de nossa vida e a razão de nossos atos, já fazendo despertar-lhe todas as aptidões naturalmente manifestadas para o trabalho produtivo, para a ciência e para as artes, já encaminhando-a de modo humano e racional para a conquista de todas as felicidades, descortinando para as suas vistas horizontes novos, fulgurantes, iluminados." (PENTEADO, idem, p.9).

A proposta libertária de João Penteado realça a importância de trabalhar no educando as suas aptidões naturais, deixando-as fluírem com liberdade para que o jovem possa aproveitar ao máximo as suas potencialidades. Tal proposta visa à formação de um ser humano que atue e crie nas várias áreas da atividade social, um homem que seja capaz de desenvolver uma atividade produtiva concreta, que produza ciência com interesse e que também atue no campo das artes.

Esta proposta de educação segue o ideário libertário que não acredita na possibilidade da transformação revolucionária da escola estatal ou confessional. Portanto, os anarquistas procuram criar novas escolas que trabalhem baseadas no ideal racional-libertário. No texto de João Penteado, ele faz referência à criação em São Paulo de uma escola racionalista:

"É este, pois, se bem que modestamente, o trabalho que temos iniciado em Sãa Paulo e que precisa, de certo, da decidida boa vontade de todas as consciências livres, da cooperação de todos aqueles que sentem a verdadeira e urgente Necessidade de se opor uma barreira à tanta degenerescência moral que se observa nos espíritos de nossos contemporâneos." (PENTEADO, idem, ibidem).

Outra referência a uma iniciativa de criação de uma escola racionalista, no início do século, é o anúncio que aparece na revista libertária A Vida de Março de 1915:

"Escola Nova Acaba de instalar-se em São Paulo, a rua Alegria , 26 (sobrado), um instituto de instrução e educação, para meninos e meninas, e que se serve dos métodos racionais e científicos da pedagogia moderna.

As matérias de ensino são ministradas em três cursos especiais, primário, médio e superior.

Curso primário: português, aritmética, geografia, botânica, zoologia, caligrafia e desenho.

Curso médio: português aritmética, geografia, mineralogia, botânica, zoologia, física, química, geometria, história universal, caligrafia, desenho.

Curso superior: aritmética, álgebra, botânica, zoologia, mineralogia, física, química, história universal, geologia, astronomia, desenho, português, italiano, espanhol, etc.

Os cursos primário e médio acham-se a carga dos " educacionistas. Florentino de Carvalho e Antonia Soares. O curso superior acha-se sob a direção de intelectuais de reconhecida competência, figurando entre eles o professor Saturnino Barbosa, Drs. Roberto Feijó, Passos Cunha, A. de Almeida Reqo, Alfredo Júnior, os quais lecionam matérias de sua respectiva especialidade.

Como se vê, a Escola Nova é uma bela iniciativa, que merece todo o apoio dos amigos da educação racionalista" (A Vida, no. 5, 31/1/1915, p.79-80).

É importante realçar que, em praticamente todas as escolas fundadas por anarquistas no Brasil do início de século, eles implantaram a propostas de Ferrer de coeducação de ambos os sexos. Como para o educador espanhol, os libertários do Brasil não aceitavam de modo algum uma educação em separado para as mulheres.

Podemos também perceber, pelo anúncio da Escola Nova da rua Alegrai, que os cursos oferecidos por esta escola apresentavam um amplo leque de disciplinas. No curso superior, a palavra etc demonstra bem a predisposição dos anarquistas a se abrir para o novo, vontade de acolher novas sugestões e de oferecer novas matérias, abrindo assim o programa para uma permanente reformulação.

Existem várias referências de criação de escolas racionais no Brasil de início do século. Estas escolas, apesar das grandes dificuldades, sobreviveram durante anos e eram, na visão socialista libertária, um dos principais recursos se atingir a sociedade acrata.

O texto de Efren Lima, que aparece na revista A Vida no. 3, de 31 / 1 / 1915, trata de vários temas relacionados com a educação do ser humano.

O autor afirma como é maléfico para o ensino de sua época a dependência do Estado. Para a educação é de fundamental importância existir a liberdade. Para E. Lima, o Estado controla o ensino porque percebe a sua importância para a submissão das massas à autoridade da burguesia. É o Estado que nomeia os professores e impõe às escolas públicas primárias e superiores.

"uns programas instrutivos, cuidadosamente compilados pelos governos e consoantes com os seus interesses econômicos, políticos, partidários etc." (Lima, Efren, A Vida, 31 / 1 / 1915, p. 6).

O educador libertário do início do século XX demonstra clara noção da importância do Estado capitalista na organização da dominação burguesa. O critério de recrutamento de professores e de programas é de vital importância para a consolidação da dominação ideológica burguesa. A criação do consenso social, que consiste na aceitação acrítica da dominação e da direção que a classe burguesa dá à sociedade, passa pelo controle do aparelho educacional e da instrução popular.

O aumento de escolas para o povo, patrocinado pelo Estado capitalista no início do século XX, tem a preocupação de ensinar aos alunos "crenças religiosas, amor pelas pátrias, respeito às autoridades, obediência às leis, proteção à propriedade privada, e milhares de monstruosidades análogas" (LIMA, idem, ibidem). Esta escola procura e consegue passar para os subalternos a ideologia que interessa à burguesia. criando a hegemonia desta.

Hegemonia, que na concepção gramisciana, é o conjunto das funções de domínio e direção, exercido por uma classe social dominante no decurso de um período histórico, sobre outra classe social e até mesmo sobre o conjunto das classes da sociedade. A hegemonia tem duas funções: uma de domínio e outra de direção intelectual e moral. O domínio supõe o acesso ao poder e o uso da força, compreendendo a função coercitiva; a direção intelectual e moral se faz através de persuasão, promove a adesão por meios ideológicos, constituindo a função propriamente hegemônica.

Efren Lima reflete sobre as bibliotecas da escola oficial estatal e sobre os escritores que "elaboram obras pueris, concordes com as tolerâncias do meio, que acham bom como é, e ao qual nunca ousariam tentar uma depuração" (LIMA, idem, ibidem). Nestas bibliotecas existem obras de escritores, que na verdade colaboram para anestesiar e alienar os trabalhadores. Estes escritores são os verdadeiros intelectuais orgânicos da classe burguesa e cumprem eficientemente o seu papel em troca de boas remunerações.

Tais escritores, intelectuais orgânicos da classe dominante, têm a função de divulgar os seus princípios no senso comum, ofuscando ainda mais o núcleo de bom senso dos subalternos. Em contrapartida, temos os intelectuais orgânicos das classes subalternas que difundem a concepção do mundo revolucionário entre as massas exploradas e dominadas. Podemos considerar os editores da revista A Vida e os organizadores das escolas racionais como sendo intelectuais orgânicos dos trabalhadores.

A experiência recente da história do Brasil nos mostra o quanto é importante, para o despertar da consciência de classe, a leitura de periódicos progressistas, a luta concreta do dia a dia e a participação em cursos livres patrocinados por entidades ligadas aos trabalhadores. A fornada de líderes ligados aos interesses populares, que década de 80 produziu, reforça estas afirmações. O aparecimento de lideres operários no Brasil, transcendem a visão simplista do senso comum e se transformam em intelectuais orgânicos das classes subalternas, se deu prioritariamente através da luta e da formação intelectual alternativa.

Para E. Lima, um grande atraso para o homem é a lei do hábito. Um ser habituado é ser escravizado. Para o ser humano livrar-se do hábito que corresponde à quietude, ao aniquilamento do libertar-se, é de grande importância a educação racional. O autor rende homenagem à grande referência dos libertários da época, que é Francisco Ferrer y Guardia, e faz uma bonita convocatória aos educadores anarquistas:

"Irmãos nossos, fugi, fugi do hábito, caminhai para a liberdade, para a mutação, para a perfeição inacabável. Jamais até hoje um segundo homem compreendeu melhor do que Ferrer, a necessidade de um ensino racional, novo e que afastando-se do dogmatismo pedagógico presente, ministrasse uma educação realmente impecável, e que evoluisse a par com o desenvolvimento das ciências. Ao mártir excelso coube a gloria de realizar este ideal tão puro, e os homens filantrópicos cumpre o dever de amparar a obra iniciada, consolida-la e multiplica-la infinitamente." (LIMA, idem, p. 7).

Outra interessante reflexão do autor está relacionada à importância da educação e transformação das relações sociais e econômicas para a consolidação de uma sociedade fraterna, igualitária e democrática. Para ele o indivíduo socializado é o resultado de três fatores: a hereditariedade, a educação e o meio.

Nesse sentido, o homem vem ao mundo com predisposições. Estas podem ser transformadas e aperfeiçoadas pela atuação da educação e do meio. E. Lima propõe a proliferação de escolas racionais e no meio social o seu saneamento, que corresponde ao término da opressão e da desigualdade. Ou seja, a realização de uma revolução social de cunho libertário.

O autor, para complementar o raciocínio anterior, escreve as esclarecedoras palavras:

"A energia primordial adquirida por via biológica poderá ser apaziguada ou extinta, por via de adaptações deformantes e posteriores. Portanto um esforço coletivo de todas as pessoas das várias nações das diversa raças terrestres, e tendente a tornar a educação dos novos indivíduos a primeira preocupação da humanidade, colocando-a em nível superior e purificando zelosamente o meio racial, deveria constituir o horizonte para o qual seriam dirigidos os valores máximas das nossos trabalhos " (LIMA, idem, p. 6).

O terceiro artigo, o de Adelino de Pinho, educador que desenvolveu várias iniciativas de criação e manutenção de escolas racionais, reflete sobre importantes aspectos relacionados com o ensino da sua época.

A conjuntura da 1ª Guerra Mundial também marcou as reflexões de Adelino e o título de seu artigo é sintomático A escola, o preludio da caserna. O autor percebe a relação estreita entre a escola primária e a formação das crianças com a preparação e o desenrolar da 1° Guerra Mundial, que tantos prejuízos trouxe para a humanidade.

A escola primária trabalha para a formação e manutenção da ideologia burguesa, que neste período acentua a sua face militarista. Adelino afirma que a escola primária confessional ou governamental tem como objetivo lançar

"mão dos cérebros infantis e modela-los a seu bel prazer, enchendo-os de formulas metafísicas e abarrotando-os de palavrões estragados, como pátria, fronteira, estrangeiro e inimigos, acostumando os ternos infantes a desconfiar dos outros povos e a precaver-se contra eles, o que leva os do país estranho a fazer o mesmo e vice-versa." (PINHO, Adelino de. A Vida, mar. 1915, pp. 75-6).

Este tipo de formação leva à desconfiança entre os povos e às guerras, o que destrói a necessária solidariedade entre os trabalhadores dos vários países. Esta visão belicista é contrária a um dos mais caros princípios do socialismo libertário que é o internacionalismo.

O que Adelino de Pinho constata com tristeza é a eficiência da escola oficial estatal ou confessional. As novas gerações da Europa, saídas destas escolas, assimilaram totalmente a ideologia burguesa e militarista e partiram céleres para a sangrenta 1ª Guerra Mundial.

Como os demais autores libertário, Adelino reflete sobre o papel do Estado na educação. Afirma que a burguesia, percebendo a decadência da influência da Igreja sobre as classes populares e a sua necessidade de mão-de-obra mais qualificada, passa a investir na criação de escolas. O Estado burguês procura investir no ensino com o objetivo de dominação hegemônica e também com o objetivo de dar o mínimo de qualificação para a mão-de-obra proletária, que vai trabalhar nas máquinas e nas indústrias dos capitalistas. Esta necessidade aumenta na proporção em que a sociedade de base industrial se consolida e se espalha pelo mundo.

Portanto para a burguesia, a educação tem um papel instrumental importantíssimo para a sua dominação sobre os trabalhadores. É por isso que "esses agentes governamentais - o.rs professores - que são obrigado a cingir-se ao programa e não ultrapassa-lo , nem quase criticá-lo" (PINHO, idem, p. 76) são selecionados pelo Estado e seguem um programa preestabelecido pelo mesmo. O Estado só deixa ensinar o que lhe é útil para a consolidação de sua hegemonia. Todos os Estados, segundo o autor, ouviram a frase de Leibnitz: "Fazei-me senhor do ensino e eu me encarrego de transformar a face do mundo".

Adelino de Pinho escreve que

"... todo este carinho revelado pelos mandões a respeito da instrução do povo, não é sincero, nem honesto, nem desinteressado, mas somente uma manobra habilíssima para que se apoderem dos filhos dos trabalhadores e prepara-os, como já acontece aos pais, amolgando-lhes os cérebros e deprimindo-lhes o caráter, a serem obedientes, humildes, submissos e respeitadores do status quo, bons manequins, dentro da oficina, quando ha necessidade de produção, e bons manequins, no campo de batalha, guando os stocks de mercadorias abundam nos armazéns e se faz mister conquistar mercados à força de punho, a ferro e fogo, para dar saída aos produtos invendíveis." (PINHO, idem, p. 77).


Para as classes populares coloca-se um clilema: ser carne da oficina ou ser carne de canhão para a burguesia. Dilema que pode ser resolvido com uma terceira alternativa que é a abertura e manutenção de escolas racionais, onde as mentes e os corpos infantis se desenvolvam livres de toda pressão e imposição. O autor compreendendo a importância que as primeiras impressões exercem no ulterior desenvolvimento individual e coletivo das pessoas, propõe como um dos meios mais eficazes para conseguirmos "... um mundo melhor onde todos gozem a alegria de viver, satisfeitos da vida e libertos da fome, da opressão e da ignorância bestial... " (PINHO, idem, ibidem) a generalização de escolas racionais que trabalhem com as crianças desde a mais tenra infância.

Os artigos de José Oiticica saem nos cinco primeiros números da revista mensal A Vida. Eles levam o título de O desperdício da energia feminina. Neles o autor propõe analisar a situação da mulher através da história.

Oiticica desenvolve interessante argumentação sobre a Energética, teoria da energia do Cosmos e do homem. Para ele "as energias humanas são de cinco espécies: físicas, intelectuais, morais, práticas e sociais. " (OITICICA, A Vida, n° 1, nov 1914, p. 6). A sociedade capitalista burguesa do início do século no Brasil e no mundo provocava um grande desperdício de energia humana e acentuadamente da feminina.

Quando o autor analisa o desperdício energia intelectual, refere-se ao ensino e ao papel das mães na educação dos filhos. Para Oiticica, a educação da massa de trabalhadores se dá por funcionários do Estado, por ele chamados de ambíguos, isto é, pessoas que são dirigidas pela classe dominante, mas que ao mesmo tempo dirigem os subalternos.

O objetivo deste ensino é "ministrar aos trabalhadores idéias, ou antes, os preconceitos favoráveis à supremacia dos dirigentes." (OITICICA, idem, ibidem). Para a elite dominante é importante manter grande parte da população analfabeta ou semi-analfabeta. Para Oiticica, "É evidente que essa classe de ignorantes representa uma formidável soma de energia intelectual desperdiçada ". (OITICICA, idem, p.7).

A mulher, neste caso, sofre as piores conseqüências permanecendo, salvo raras excepções, na mais profunda ignorância. As que se revoltam contra o homem e os preconceitos burgueses sofrem tenaz repressão.

Para o autor é lastimável que a mulher não tenha acesso à cultura porque:

"Basta considerar a educação do filho, para medir o alcance da educação intelectual da mulher. Criar um filho, educar um filho é um problema que exige uma instrução vasta e variada. Toda mãe de família deveria ser uma pedagoga; mas pedagogia se baseia na psicologia e na fisiologia, que supõem o preparo em ciências correlatas, digamos melhor em todas a ciências." (OITICICA, idem, ibidem).

O papel da mãe, portanto, é de grande importância na formação intelectual das crianças. O autor demonstra uma ampla visão de educação, não restringindo esta apenas às escolas. As mães ignorantes passam para as crianças a ideologia dominante, contribuindo assim para a manutenção da ordem burguesa.

Oiticica não concebe a educação da juventude apenas sob a responsabilidade e exclusividade da escola. Ele percebe a importante contribuição que a família pode dar na educação dos jovens. É certo que a família atual tem que ser revolucionada e organizada sob uma orientação libertária. A família libertária baseada no amor é assim explicada por Heliodoro Salgado:

"Desde que o homem e a mulher se desejem, se gozem, se estimem, tudo mais resulta como os corolários de uma premissa. O amor implica responsabilidade, o respeito, o cuidado, a solïdariedade plena em todas as alegrias e em todas as dores.

Desde que se torne precisa a intervenção da lei é porque o amor cessou. E desde que o casamento repouse sobre o amor, cessado este, está dissolvido aquele, espontaneamente dissolvido, reassumindo cada qual dos membros do par conjugal a sua inteira liberdade.

Assim comprometida, a união livre não é a anulação da família; é a sua dignificação pelo respeito da liberdade, da personalidade dos esposos (. . .).

(...) O que impede (o amor livre) a sua generalização não é o crédito, das velhas instituições familiares; são as necessidades econômicas dum regime das riquezas fundadas na ´ legitimação dos filhos ´ .

Desde, porém, que o socialismo tenha conseguido minar e derruir as instituições econômicas que herdamos dum passado bárbaro e desumano, essa justificação da família legal terá desaparecido, e a família libertada passará a ter apenas por base , por garantia e por lei, o amor.

Assim, a família não se extinguirá, a não ser que se extinga a própria humanidade; mas depurar-se-á no sentimento e na prática da liberdade. " (Salgado H. apud SOARES, V. Os trabalhadores e a questão da saúde – 1890. 1985, pp. 25-6).

O autor conclui sua argumentação, afirmando a importância da mulher numa futura sociedade acrata e o seu papel na extinção do desperdício da energia intelectual humana:

"ninguém deveria ser mais enciclopédico do que a mãe de família e portanto do que a mulher. Uma sociedade bem constituída seria aquela em que todas as mulheres pudessem ser amplamente instruídas. "
(OITICICA, A Vida, n° 1, nov, 1914, p. 7).


Termino por aqui. Os textos de João Penteado, Efrem Lima, Adelino de Pinho e José Oiticica são riquíssimos e permitiriam maiores análises.

Espero que estas linhas contribuam para o nascer de uma sociedade igualitária, libertária e fraterna e que a educação no terceiro milênio cumpra a sua missão histórica, ou seja, propiciar o desenvolvimento de seres livres e sem preconceitos.


Bibliografia
Centro de Memória Sindical/Archivo Storico del Movimento Operario Brasiliano (org.) A Vida – Periódico Anarquista
(1914-1915). Edição fac similar. São Paulo: Ícone, 1988.
COUTINH0, Carlos Nelson. Gramsci - Fontes do Pensamento Político. Porto Alegre: LPM, 1981.
GRAMISCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1987

Revista Utopia #5