Conferência Internacional sobre Ecologia Social e suas perspectivas políticas.

Municipalismo Libertário

João Freire

Realizou-se em Lisboa nos dias 26, 27 e 28 de Agosto de 1998 um encontro internacional subordinado à temática que figura no título deste texto: a ecologia social, as perspectivas políticas que esta teoria pode abrir e a conceptualização de um municipalismo marcado pelos valores do libertarismo e pelas referências ideológicas do anarquismo.

A iniciativa desta conferência partiu dos libertários de Montreal e do Instituto de Ecologia Social de Plainfield, no Estado norte-americano do Vermont, onde ensina Murray Bookchin, tendo sido apoiada em Lisboa por um grupo informal de pessoas que puderam contar com uma base logística no centro de pesquisa Socius, do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa. Na realidade, para dar o devido reconhecimento às contribuições de cada um, deve confessar-se que o sucesso desta realização caberá, na sua maior parte aos esforços de Dimitri Roussopoulos, no plano americano e internacional, e de Carvalho Ferreira, no plano da organização em Lisboa. De resto, no próximo ano, a conferência prolongar-se-á com um outro encontro internacional em Vermont, que deverá desenvolver e aprofundar as ideias e perspectivas entreabertas em Lisboa.

Nos meses e semanas que antecederam o evento, assistiu-se em alguns meios do militantismo anarquista a uma incompreensível campanha de imprensa para condenar politicamente a iniciativa. Tal atitude partiu dos anarquistas espanhóis da CNT e da FAI, contou em Lisboa com o olho e a mão do grupo "Acção Directa" e utilizou os sempre desagradáveis e condenáveis métodos de caluniar pessoas, de fazer especulação afectiva e da veiculação de algumas inverdades.

É natural que aqueles anarquistas que continuam a defender, contra ventos e marés, os princípios do anti-estatismo, do sindicalismo de de acção directa e da revolução insurrecionalista como pontos de doutrina absolutamente indiscutíveis se manifestem contra uma orientação ecologista libertária que se baseia mais no interclassismo, numa gestão alternativa territorialista e não desdenha a acção eleitoral no plano comunal ou municipal. É natural, embora fosse mais interessante e saudável que se dispuzessem a discutir racionalmente os vários temas e argumentos em causa. Mas já causa desgosto constatar como, numa época em que o anarquismo militante não tem qualquer peso nem reconhecimento social, em nenhum país ou região do mundo, existem militantes aferrados ao papel de sacerdotes guardiães duma ortodoxia cuja principal missão consiste precisamente em combater os ténues ensaios de discussão e experimentação de alternativas que possam remediar tal estado de coisas e descobrir modos de actualizar e melhorar a postura desta filosofia política nas sociedades existentes nos finais do Século XX, tão diferentes já daquelas em que Proudhon e Bakunin viveram e para as quais congeminaram respostas progressistas e emancipadoras.

Tirando estes àpartes, a conferência revelou alguns motivos de interesse, mas também dificuldades e fragilidades que não seria bom esconder. Com efeito, por um lado, uma certa síndrome de pecado, desvio ou cisão pairou sobre parte dos debates, revelando que se tratava, antes do mais, de um conclave de anarquistas que estavam ensaiando terrenos de alguma infracção ideológica. Neste aspecto, ficaram frustrados aqueles que haviam tomado a iniciativa pelo seu valor facial, isto é, que esperavam da ecologia social mais, ou outra coisa, do que uma variação nova sobre velhos temas anárquicos.

No primeiro dia, os trabalhos começaram com as boas vindas de Carvalho Ferreira aos cerca de sessenta participantes presentes, a que se seguiu uma longa intervenção de Janet Biehl sobre o tema do encontro: "The Politics of Social Ecology: Libertarian Municipalism". Tratou-se duma exposição dos pontos essenciais da filosofia política desenvolvida há mais de vinte anos por Murray Bookchin, através da palavra e do texto de uma (aparentemente) sua fiel discípula e próxima colaboradora. Chaia Heller (também de Vermont, USA), Roger Jacobs (de Hasselt, Bélgica), Eirik Eigland (de Porsgunn, Noruega), Dimitri Roussopoulos e Maria Magos Jorge compuzeram o painel que, ainda nessa manhã, discutiu um ou outro aspecto particular do pensamento de Bookchin. E da parte da tarde, novas comunicações apresentadas por Chaia Heller e pelo canadiano do Quebeque Marcel Sevigny prolongaram este tipo de reflexão. Na realidade, durante todo este primeiro dia da conferência, foram efectivamente as ideias de Bookchin que estiveram postas a debate, questionadas sobretudo pelas teses do anarquismo mais tradicional, como por exemplo a questão da defesa das situações de influência social hipoteticamente alcançadas, perante o contra-ataque das forças e dos interesses sociais adversos. No final da jornada, pôde ver-se um vídeo contendo uma entrevista com Murray Bookchin, impossibilitado de deslocar-se à Europa por motivos de saúde.

No segundo dia, os trabalhos decorreram basicamente em três workshops temáticos. No grande auditório – onde se dispunha de um sistema de tradução simultânea inglês-espanhol-português – o tema era "Problemas sociais e movimentos sociais urbanos". Na parte da manhã aí apresentaram comunicações o australiano Hamish Alcorn, o espanhol Garcia Rey, e os portugueses José Tavares e José Luís Félix. Garcia falou sobre a necessidade de uma perspectiva territorial nos projectos de emancipação social, sobre a importância dos cenários urbano-territoriais na crise dos sistemas actuais e sobre a importância dos movimentos sociais em torno de práticas de resistência aos processos de mundialização e de imposição dum pensamento único simultâneo ao desenvolvimento de iniciativas de autogestão territorial. Tavares apresentou uma comunicação sobre "O trabalho e a sua ultrapassagem" e Félix interveio sobre "Processos de auto-organização em meio urbano", enfatizando as possibilidades existentes para formas de participação, mau grado o clima existente adverso à criatividade e à iniciativa solidária.

Na parte da tarde, prosseguiram os debates nesta secção com uma comunicação do sociólogo espanhol Miguel Martinez sobre "A invenção estratégica: auto-planeamento popular e autogestão ecológica urbana", onde o autor apontou os limites do chamado planeamento estratégico no urbanismo, evidenciando as dimensões não planificáveis, para propor outras categorias adequadas como a de "invenção estratégica" na qual a acção precede ou é simultânea à reflexão. A esta se seguiu a comunicação dos turcos Sureya Evren e Rahmi Ogdul e, por fim, a de Carvalho Ferreira sobre "Tendências da marginalidade social e dos movimentos sociais no contexto urbano". Na secção "Cultura e vida social no Século XIX: o local e o global", da parte da manhã, puderam escutar-se as seguintes comunicações: de António Cândido Franco, acerca do despovoamento e desertificação do Sul de Portugal, enfocada na problemática das relações entre o mundo urbano e rural; do uruguaio Alberto Villareal; de Carlos Sousa, presidente da Câmara Municipal de Palmela, sobre a participação popular na gestão municipal; do advogado Alfredo Gaspar, sobre o modo como os municípios estão integrados na ordem jurídica constitucional, concluindo que a tutela administrativa dos mesmos não é compatível com o conceito de municipalismo libertário; e do sociólogo António Pedro Dores sobre "As prisões e a acção cívica", questionando as actuais políticas prisionais (em relação à droga e à imigração clandestina, por exemplo) que, mesmo se marcadas por preocupações humanistas, podem legitimar práticas estigmatizantes e descuidadas com os direitos humanos, preocupando-se com este "lado fechado" da vida colectiva urbana.

À tarde, a discussão do tema foi prosseguida pelo americano Bob Spivey, por Mário Rui Pinto, com uma exposição sobre as diferenças entre o contexto onde emergiu o "velho anarquismo" e aquele em que hoje nos encontramos, que apela à invenção de um "novo anarquismo", por Mimmo Pucciarelli, que igualmente acentuou as diferenças entre os velhos e os novos anarquistas, mas sobretudo no plano das suas respectivas inserções sociais; pelo canadiano anglófono Frank Harrison, que apresentou uma comunicação sobre os grandes pontos de contacto existentes entre os pensamentos de Kropotkin e de Bookchin, tais como o papel do território e da comunidade e os conceitos de evolução/re-volução; e, por último, por Ilídio Santos, com uma intervenção sobre "Socialização, conformidade, desvio", na qual foram postas em destaque as actuais "culturas psicotizantes" e a "função hipnótica e narcótica das máquinas de imagens".

"Marx, como Bookchin tem reiterado desde o seu estimulante Escuta Marxista!, aceitou a estrutura produtiva, baseada em preceitos hierárquicos. Consequentemente, a sua solução política assentava na hierarquia; e quando os marxistas se apoderaram finalmente do poder político (em sociedades onde Marx nunca sonhara que tal poderia acontecer) procuraram simplesmente reproduzir a estrutura do capitalismo num sistema de propriedade estatal. O resultado, como vimos nas duas últimas décadas, foi uma devastação do ambiente ainda mais excessiva e horrível do que a do capitalismo no Ocidente."

Frank Harrison
in Bookchin e Kropotkin: alguns temas intelectuais e organizativos comuns

Na secção "A economia das pequenas e das grandes cidades" foram apresentadas e discutidas quatro comunicações: os noruegueses Eiglad e Legard expuseram os fundamentos do municipalismo libertário, num registo sobretudo político e ideológico; em seguida o espanhol Carlos Ramos interveio sobre "O municipalismo libertário, alternativa ao municipalismo capitalista" enfatizando o quadro político democrático existente em países como a Espanha actual, a rica experiência de vinte anos de "associações de vizinhos", a necessidade de "tradução" dos orçamentos municipais para os tornar compre-ensíveis para o cidadão comum, as possibilidades existentes de oposição – através da mobilização popular – à gestão capitalista dos municípios (tanto os geridos por partidos de direita como por partidos de esquerda), o conceito de movimento social municipal e, por último, a necessidade de estruturar formas de participação política municipal mais avançadas, estáveis e eficazes, embora sempre assentes em redes de associações populares de base, de natureza diversa mas onde a participação directa dos cidadãos seja uma realidade; o americano Dan Chordokoff relatou a experiência de mobilização popular dum bairro pobre de Nova Iorque com cerca de 30.000 habitantes, desde os anos 70, assente na colaboração estabelecida entre uma centena de associações populares de base influenciadas por diversos grupos e ideologias políticas, mas que foram capazes de estruturar uma economia local a partir da inventariação de recursos e necessidades – de alojamentos, creches, escolas, clínicas e centros de saúde, emprego, marginalidade, etc. – e da mobilização das pessoas comuns, embora tal experiência tivesse, no entender do autor, demonstrado duas insuficiências importantes da acção desenvolvida, a saber, a dependência local da "grande economia" (a que determina os preços das casas ou o desemprego, por exemplo), e a incapacidade em apresentar alternativas políticas credíveis na altura das eleições para os órgãos do poder municipal; por último, o escossês Mike Small falou sobre o caso histórico do urbanista Patrick Geddes e da acção desenvolvida em Edimburgo nos finais do século passado tentando conjugar iniciativas populares de habitação, educação e trabalho, e articulando as identidades de base geográfica como os "regionalismos" às práticas políticas e cívicas da democracia directa, que estão na base do moderno pensamento da ecologia social.

Este segundo dia encerrou com uma sessão plenária na qual os coordenadores dos diferentes seminários apresentaram sínteses das comunicações e dos debates havidos.

No dia 28 os trabalhos decorreram de novo em plenário permanente (com o inestimável benefício da tradução simultânea). A parte da manhã foi consagrada à apresentação de relatórios das situações e experiências locais de ecologia social relativos a dezasseis cidades: Amsterdão, Brisbane (Austrália), Burlington e Plainfield (no Vermont, USA), Lyon, Montevideo, Salónica, Montreal, Madrid, Málaga, Valência, Porsgunn (na Noruega), Grafenau (na Alemanha), Antuérpia, Istambul e Edimburgo.

"O ideal tecnológico-racional, que guia a evolução brutal da nossa sociedade, cria um divórcio, cada vez mais pronunciado, entre uma vida profissional impessoal, submetida unicamente ao critério da eficácia, e uma vida emotiva extremamente restrita quanto à sua extensão e empobrecida quanto à sua intensidade. A maior parte dos nossos contemporâneos vive na fascinação de um optimismo tecnológico falso e de um pseudo-racionalismo insensato que servem de justificação e de disfarce para as angústias – bem reais desta vez – no que respeita à incerteza em relação ao futuro."

Ilídio dos Santos
in Socialização, conformidade e desvio

À tarde, foram discutidos mais em particular dois temas cuja importância havia ressaltado dos relatos feitos das várias experiências locais: as relações entre as organizações populares de bairro ou vizinhança e as estruturas oficiais do poder municipal; e as experiências, mais ou menos frustradas, de candidaturas a eleições municipais por listas ou movimentos ecologistas, alternativos e libertários.

Carvalho Ferreira e Dan Chordokoff encerraram os trabalhos da conferência, que, como se disse, irá ter continuação no Verão de 1999 em Vermont e para a preparação da qual foram designadas várias pessoas que compõem agora a respectiva comissão organizadora internacional.

A Batalha - VI Série, Ano XXIV, Julho – Agosto, 1998. #170