Ecologia Social e Desenvolvimento

É indubitável que em pleno apogeu do progresso e da razão, a complexidade da mudança sócio-cultural, política e económica mergulhou todas as sociedades numa crise profunda que tende inclusive a pôr em causa a sobrevivência da espécie humana.

Estamos, portanto, num período histórico de paradoxos estruturados pela sofisticação e o desenvolvimento gigantesco das capacidades e possibilidades científicas e tecnológicas. Entre as várias manifestações em que se corporiza essa realidade, emerge a atividade econômica com um desenvolvimento ininterrupto das funções de produção e de consumo de bens e serviço. Paradoxalmente, no entanto, a riqueza produzida não se traduz numa distribuição e apropriação equitativa pelos diferentes indivíduos, grupos e classes sociais que constituem as diferentes sociedades. Por outro lado, a relação do homem com a natureza tende a agravar-se no sentido de um desequilíbrio irreversível, destruindo progressivamente a harmonia ecossistémica que subsistia há vários milénios.

Hoje, face à gravidade dos problemas existentes, para além de perceber os sintomas dessa crise, interessa-nos explicitar os factores e as condições que se revelam mais emblemáticos para o devir da natureza e da humanidade. Assim, quando nos debruçamos na análise do sistema social global, deparamos, quase sempre, com uma situação sócio-cultural que põe em risco as hipóteses de interacção social que fundamentam os processos de sociabilidade e de socialização dos indivíduos à escala planetária. Para tal basta olharmos para os níveis de pobreza e de desemprego, de marginalidade e de miséria social, pressão demográfica, fome e guerra que persistem à escala mundial. Simultaneamente, quando observamos as modalidades de intervenção e de transformação do homem nas suas relações com a natureza e o ambiente em geral, questionamos até que ponto ainda nos é possível sobreviver no planeta Terra.

Cientistas e políticos são pródigos em interpretações que indiciam que caminhamos para o abismo, caso nos mantenhamos com o mesmo modelo de desenvolvimento económico e social (ROBIN, 1977). Essas hipóteses são de tal modo negativas que, face à impotência das soluções racionais-instrumentais da sociedade capitalista para inverter essa evolução, revela-se cada vez mais banal a função utilitária das alternativas ecologistas até há pouco tempo consideradas utópicas pelo mercado e o poder normativo vigente. Tendo presente essa realidade, mais do que enumerar e pretender superar as contradições existentes através das múltiplas soluções terapêuticas normativas que pretendem superar os efeitos da crise social e humana e da natureza, sem se preocuparem de extinguirem as causas da mesma, torna-se imperioso e urgente analisar o modelo de desenvolvimento económico, social, cultural e político que está na origem do dilema histórico em que nos encontramos.

Infelizmente, nos dias que correm, as análises científicas tendem a reflectir os desígnios ideológicos da racionalidade instrumental do capitalismo e a servirem como um produto circunscrito aos sucessos conjunturais da moda intelectual e espectáculo informativo dos "mass media". Acresce a esse facto, revestirem-se ainda de uma pseudo-neutralidade científica identificada com as necessidades intrínsecas da sociedade, esquecendo-se que foram objecto de uma institucionalização, cuja legitimidade foi outorgada em função dos interesses das classes dominantes e do Estado. Os paradigmas científicos mais representativos são, neste domínio, o exemplo mais acabado desse tipo de posição.

É muito fácil chegar a essa conclusão. Verifique-se a "objectividade" e a "neutralidade" dos milhares de artigos e livros escritos sobre os temas sublinhados e tenha-se presente, a esse respeito, os milhares de análises que se realizaram sobre a natureza e a história dos países denominados "socialistas". Numa outra perspectiva, observe-se o sentido meta-histórico de uma evolução unilinear pretensamente harmoniosa que se pretende dar ao modelo de sociedade capitalista, enquanto processo histórico distintivo do desenvolvimento sócio-cultural, económico e político das sociedades. Contra esta hegemonia totalitária, persistem um conjunto de autores que se revelam excepções marginais às regras científicas predominantes. Por opções éticas, morais e científicas têm analisado, de forma radical, esse modelo de desenvolvimento, demonstrando as suas contradições e limites históricos.

Não obstante saber do peso dessas posições hegemónicas e contradições paradigmáticas, perante os desafios que se nos apresentam, mais do nunca, torna-se imperioso compreender e explicitar as características e tendências do modelo de desenvolvimento que está na origem da crise que atravessamos.

Quase sempre, em situações históricas semelhantes, quando assistimos a este tipo de fenómenos, os sintomas críticos do modelo de desenvolvimento capitalista, tendem a ser resolvidos pela via da reforma ou de uma hipotética revolução. Ambas coexistem num processo de interdependência e complementaridade, estimulando e estruturando soluções de ultrapassagem da crise social, humana e ecológica. Tendo presente os sucessivos insucessos das reformas e revoluções já realizadas, assunção, os cenários de mudança ou de transformação radical da sociedade capitalista que possamos deduzir, revestem-se de contingências e ensinamentos históricos que não podemos descurar. Numa óptica estrita de sobrevivência histórica e de intervenção social pautada pela coerência e a eficácia, nada mais nos resta do que evoluir no sentido da construção de uma outra sociedade. Esta terá que ser ser dinamizada com base em transformações económicas, sociais, políticas e culturais de características radicais. Na emergência deste quadro revolucionário, a ecologia social assente nos princípios e práticas do anarquismo, tantas vezes esquecida e adulterada como um modelo utópico, revela-se, hoje, com virtualidades inesgotáveis.

A ecologia social aparece, assim, como uma hipótese histórica de superação das incongruências funcionais do atual modelo de desenvolvimento que subsiste à escala planetária. Nesse sentido, ela introduz novas perspectivas de equilíbrio ecossistémico entre as diferentes espécies animais e vegetais e, sobretudo, entre o homem e a natureza. Finalmente, pela sua essência anarquista, ela aparece como uma potencialidade real de construirmos um novo mundo, o que nos indicia desenvolvermos uma ética e uma filosofia apoiada em princípios humanistas e fraternais em relação à sociedade e à natureza.

1. Características da crise do sistema social global no limiar do século XXI

A generalidade das análises que se debruçam sobre a atual crise da evolução das sociedades contemporâneas sublinham, com especial significado, os problemas relacionados com a explosão demográfica, a destruição do ambiente, a guerra, o desemprego, a marginalidade social, a fome e a pobreza.

Se pensarmos na pertinência desses diferentes flagelos no contexto estrutural e institucional das atuais sociedades, verifica-se que todos eles estão em estreita sintonia, quer nas causas que estão na sua origem, quer nos seus efeitos perversos. Todos esses fenómenos resultam de uma lógica competitiva e concorrencial, na qual os objectivos do lucro e da exploração estão sempre presentes. Em termos de uma racionalidade pautada por fins e meios, todos eles estão submetidos a um sistema de eficácia e eficiência capitalista. Na maneira como estão articulados entre si, cada um deles desenvolve-se num sentido interdependente e complementar. Os resultados lógicos da interacção que resulta desse sistema complexo são visíveis através da produção e consumo de bens e serviços, na transformação e esgotamento dos recursos naturais e num crescendo populacional inaudito. A outra versão dessa interacção produzida pelos diferentes componentes do sistema social global observa-se através da explosão dos fenómenos migratórios, da pobreza, da segregação e marginalidade social provenientes da catástrofe ambiental, da guerra, do desemprego e da fome à escala universal (PNUD, 1994).

As projeções da população mundial para o ano de 2050 apontam para cerca de 10.000 milhões de pessoas no planeta Terra. Entre as várias consequências, importa referir as suas incidências geográficas e ambientais. O continente africano, que conta atualmente com 12% da população mundial, no ano de 2050 passará a deter 27% da referida população. Em comparação, para o mesmo ano de 2050, a Ásia manter-se-á ligeiramente acima dos 50% da população total, enquanto que a América Latina passará dos 9% actuais para 10% da população total no ano de 2050 e a população total dos países considerados desenvolvidos tenderá a decrescer dos 23% actuais para 13% (FNUAP, 1992).

Sem descrever as profundas implicações que resultam da pressão demográfica em termos ambientais, económicos, políticos, sociais e culturais, importa, para já, pensar em alguns dos seus aspectos mais significativos. Segundo as projeções do Relatório sobre a População Mundial de 1992 elaborado pelas Nações Unidas, a manter-se essa evolução demográfica, persiste a necessidade de aumentar em 56% a área de terreno cultivável que os países "considerados em desenvolvimento" actualmente dispõem: isto é, só para as necessidades de terrenos não agrícolas ter-se-á que recorrer a 4,5 milhões de quilómetros quadrados de "habitat" da fauna selvagem considerados para fins agrícolas. Dito de outro modo, cada pessoa nos países em desenvolvimento terá possivelmente à sua disposição 11% de 1 (um) hectare de terra cultivável.

A destruição do ambiente é visível a diferentes níveis. Para essa averiguação basta olharmos para o grau de destruição dos recursos renováveis até agora considerados "ilimitados": água, terra, espécies vegetais e animais. A erosão dos solos, a desertificação das zonas semi-áridas, a salinização das áreas irrigadas e a poluição dos rios e dos mares são disso uma prova irrefutável (SACHS, 1980). Acresce a essa realidade ambiental negativa, a poluição atmosférica e hídrica, o sobre-aquecimento da terra, a destruição progressiva da camada do ozono, a destruição das florestas e de milhares de outras espécies vegetais e animais (WEINER, 1991).

O esgotamento e a erosão dos recursos naturais considerados "renováveis", como é o caso da água e dos solos aráveis, são previsíveis nessas projecções e sobretudo apontam para uma eventual catástrofe ecológica. Em presença de um crescente agravamento da poluição atmosférica e hídrica, da destruição progressiva da camada do ozono, do sobre-aquecimento global do planeta Terra, das calamidades naturais que estão ocorrer nos países mais industrializados e urbanizados, etc..., essas tendências negativas desenvolvem-se, cada vez mais, com maior acuidade.

Não se pode analisar a destruição do ambiente em função exclusiva da erosão e esgotamento dos recursos naturais. A lógica racional da sociedade capitalista assente numa economia de produção e consumo de bens e serviços efémeros, e a guerra que emerge em inúmeros países, estão a contribuir enormemente para essa situação. O número de refugiados internacionais é neste aspecto muito elucidativo. Para fugir à guerra ou à miséria provocada por cataclismos naturais de uma economia depradadora, percebe-se, de certa maneira, porque dos 2,8 milhões de refugiados em 1976, passou-se para 17,3 milhões em 1990. Com o agravamento da crise económica e a proliferação dos conflitos bélicos à escala regional, o número de refugiados tende a aumentar assustadoramente. Se juntarmos a esta realidade o número de emigrantes clandestinos, depreende-se de como a África, a América Latina, a Ásia e a África estão a tornar-se um laboratório experimental migratório para outras regiões geográficas. Vivendo em condições infra-humanas, sujeitam-se a emigrar para os países vizinhos, ou em última análise para os EUA e a Europa ocidental, de modo a evitarem o genocídio provocado pela guerra e a fome. Se tivermos, ainda, em linha de conta a desintegração social e económica que subsiste nos países do leste europeu que tinham enveredado pelo "socialismo real", os problemas das migrações clandestinas assumem proporções alarmantes no continente europeu. Acresce que os fenómenos migratórios resultam também da miséria existencial que abunda numa parte significativa desses países. O número de pobres que era de 944 milhões em 1970, segundo o relatório das Nações Unidas já mencionado, subiu para 1.156 milhões em 1985 e na perspectiva de outras fontes recentes esse número não pára de aumentar (PNUD,1994). Em termos da sua situação geográfica, 273 milhões vivem na África, 204 milhões na América Latina e 737 milhões na Ásia.

É notória a intenção dos referidos relatórios em demonstrarem as incidências negativas da pobreza nos países em desenvolvimento. Ora este panorama não é muito brilhante nos países "considerados desenvolvidos". Segundo estimativas recentes (Diário de Notícias, 1992), havia 53 milhões de pobres na CEE numa população de 340 milhões, enquanto que nos EUA, para uma população de 245 milhões, existiam 31,5 milhões de pobres. Este tipo de pobreza embora possa ser considerado diferente daquela que ocorre nos países em desenvolvimento, na medida em que podem usufruir de educação, saúde, da segurança social e habitação num limiar de sobrevivência mínima, ela revela-se fundamentalmente uma chaga social que não pára de crescer e de se identificar com as causas e os efeitos perversos do funcionamento normativo dos países capitalistas desenvolvidos (PNUD, 1994).

Torna-se claro, cada vez mais, que a crise actual da sociedade capitalista e do seu modelo de desenvolvimento não afeta exclusivamente os países em vias de desenvolvimento. O desemprego e a marginalidade social, a violência, a droga, o crime, a guerra, a xenofobia, o racismo e o etnocídio, assim como a segregação social, também fazem parte do mundo "civilizado" do ocidente.

Numa perspectiva sociológica, todos esses fenómenos resultam de um conjunto de fatores cuja evolução tende a agravar a crise do modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista. Sem querer dar-lhes uma base determinista, entre os mais importantes, sublinhe-se: a pressão demográfica; a urbanização e burocratização das relações sociais e dos processos de socialização dos indivíduos e grupos sociais; pobreza e desigualdade social; nacionalismos e integrismos religiosos; anomia e desintegração social.

As manifestações sócio-culturais da pressão demográfica não se coadunam com os pressupostos analíticos das teses malthusianas e darwinistas. A espécie humana vê-se constrangida a lutar pela sobrevivência, utilizando formas relacionais de tipo coletivo e individual alienantes. É uma luta traduzida por uma racionalidade espaço-temporal mercantil, regulada, em parte, por processos migratórios conflitantes, fomentadores de uma segregação ecológica e social.

Porém, com base nas virtualidades explicativas dessas teses, nem a função estruturante da racionalidade económica, nem as virtualidades do determinismo biológico da natureza humana têm impedido que o crescimento da população mundial evolua de modo caótico e as excrecências comportamentais das elites governamentais sejam irracionalmente competitivas.

Em contextos estruturantes da pobreza e da miséria e em situações contingenciais ambientais adversas, é natural que as taxas de fecundidade e de natalidade aumentem de forma desproporcionada. Na Europa Ocidental e nos EUA passa-se um fenómeno inverso: as taxas de fecundidade e da natalidade tendem para a estacionaridade. Esta realidade aponta para a importante função da diversidade dos valores sócio-culturais, quase sempre identificados com comportamentos humanos estandardizados no domínio da procriação e reprodução da sua espécie.

Num outro plano, importa referir que os princípios e práticas do mimetismo polarizado no sistema capitalista à escala universal tem gerado processos de êxodo rural e de urbanização desequilibrados. O desenvolvimento discrepante dos sectores agrícola, industrial e terciário, para além de gerar uma desigualdade social, económica, política e cultural de características negativas, transformou os aglomerados urbanos num antro de miséria e de marginalidade social. Destruindo-se as relações sociais comunitárias, diminuindo-se as bases de coesão social, desintegrando-se os laços de solidariedade social, criam-se as condições que fomentam um acréscimo gigantesco das taxas de fecundidade e de natalidade. Como consequência, a pressão demográfica nos grandes aglomerados urbanos desenvolve-se em termos de uma dimensão, heterogeneidade e densidade populacionais que conduzem à desintegração e à anomia social.

Uma das outras vertentes da pressão demográfica e do processo de industrialização e urbanização das sociedades expressa-se em tipologias de ordenamento do território e na utilização do solo de forma caótica e desordenada. A distribuição e organização espacial das zonas de residência e de trabalho, assim como das infraestruturas e equipamentos coletivos, não se coadunam com uma organização social harmoniosa e, por outro lado, transforma a cidade num amontoado caótico de cimento, vidro e ferro, na qual se torna impossível viver.

O processo de urbanização das sociedades, ao mesmo tempo que induz à transformação da matéria orgânica em matéria inorgânica (ou seja, através da transformação dos elementos naturais em elementos de construção do "habitat", fábricas, hipermercados estradas, infraestruturas e equipamentos colectivos, etc.), traduz-se, por outro lado, numa organização social perpassada por uma crise de identidade e de representatividade social. O isolamento dos indivíduos e dos grupos no contexto da complexidade organizacional dos grandes aglomerados urbanos assume proporções inauditas. As relações sociais não se fazem numa base directa em situações de co-presença física e visibilidade relacional, o que impossibilita a construção social de diálogos baseados na fraternidade e na solidariedade. Os indivíduo e os grupos, estando sós e sendo dependentes de um poder dominante que lhes escapa, entram num processo de desintegração social.

Pode-se compreender esses fenómenos se tivermos presente as dificuldades de uma interacção social positiva e funcional em contextos urbanos que atingiram uma grande dimensão, níveis de densidade e de heterogeneidade populacionais altíssimas. Desse contexto, depreende-se as contingências e os constrangimentos provindos do exercício burocrático da representatividade formal para suprir as exigências funcionais de uma sociedade, cada vez mais, complexa e sofisticada. A anomia e a desintegração social são passíveis de observar tendo presente o peso da burocratização e da centralização dos processos de regulação social.

A outra versão moderna da desintegração social e da anomia subsistem ao nível das perdas de referência e de identidade social. Esta realidade é não só perceptível no âmbito da especificidade das relações sociais corporizadas na superficialidade e transitoriedade relacional nos contextos urbanos, mas também ao nível da destruição progressiva das relações sociais baseadas no interconhecimento e nos processos de aprendizagem social e de aculturação que só podem ser dinamizados pelos pequenos grupos e as comunidades locais (CHOMBART DE LAUWE, 1982).

Na ausência desses requisitos de organização social, formaram-se, entretanto, estruturas burocráticas gigantescas que decidem anacronicamente do governo e da gestão das cidades. Simultaneamente, a longiquidade espaço-temporal que persiste entre a sociedade global e os indivíduos, entre o Estado, instituições, organizações, os grupos e indivíduos, leva a que o sistema de representatividade formal de natureza burocrática e centralista não permita uma socialização e sociabilidade positivas dos indivíduos e dos grupos, razão pela qual os fenómenos de desintegração social e de marginalidade social crescem em exponencial e certas instituições e cientistas sociais reivindiquem uma maior participação dos indivíduos nos mecanismos processuais de integração social (PNUD, 1993).

Desde que não haja uma participação e decisão dos indivíduos e grupos sobre a governação das cidades, persiste um alheamento generalizado dos mesmos sobre todas as contingências negativas que daí resultam. As relações de identidade entre o que é do foro individual e colectivo não existe. A interação entre os diferentes elementos humanos que constituem o sistema urbano revela-se difícil de realizar, o que condiciona enormemente as relações de interdependência e de complementaridade relacionadas com as tarefas e funções do seu funcionamento global.

Um outro fator da crise do modelo de desenvolvimento capitalista emerge do desemprego. Este, como todo o trabalho baseado num vínculo contratual precário, exprime o estádio normativo de regulação das necessidades do mercado de trabalho capitalista à escala da economia global. Corresponde, estruturalmente, aos ditames do crescimento e progresso económico e está articulado deterministicamente às vicissitudes da revolução tecnológica em curso, com especial incidência na informática, micro-electrónica, biotecnologia, telemática, robótica, indústria espacial, etc. Estes factores desintegram o sistema de relações sócio-profissionais e das relações industriais que perdurava há vários decénios, por via das restruturações sistemáticas realizadas no âmbito das qualificações e divisão social do trabalho do trabalho e, por outro lado, desenvolvem-se novos saberes técnicos e humanos nos sectores terciário e industrial à escala universal, em detrimento progressivo dos saberes e práticas relacionadas com a actividade dos sector primário. No fundo, as bases estruturais e institucionais, do que foi denominada a segunda revolução industrial, estão a desintegrar-se, dando origem à formação de um mercado de trabalho segmentado numa regulação sustentada por trabalhadores desqualificados, qualificados, desempregados ou com vínculo contratual precário.

Em parte, enquanto consequência lógica do mundo dos desempregados que pululam nos grandes aglomerados urbanos, a marginalidade e a segregação social são também a expressão genuína da competição e da concorrência desenfreada que decorrem de uma regulação social apoiada num crescimento económico desenfreado. Esta racionalidade económica levada ao extremo tem custos irreversíveis. Quem não consegue posicionar-se no mercado do trabalho em situação privilegiada de concorrência ou de vantagem competitiva, facilmente soçobrará na pobreza ou na exclusão social. Quem não consegue adaptar-se aos padrões competitivos das funções de produção e de consumo mercantil identificado com a lógica normativa de capitalização humana, ver-se-á impossibilitado de apropriar-se do conjunto de necessidades que lhe permitem sobreviver, o que geralmente se traduz a evoluir para formas de existência pautadas pela marginalidade social e, logicamente, a ser objecto de exclusão e segregação social (PASSET, 1979).

Não podemos, porém, confinar os problemas da marginalidade e da segregação social ao determinismo económico da sociedade capitalista. Ambas as realidades são também o produto de modelos sócio-culturais e políticos predominantes que se estruturam através de um processo social fundamentado na inclusão e de exclusão de grupos sociais diferenciados e contrastantes.

A alteridade sócio-cultural não é passível de socializar com base em identidades comunitárias diferenciadas. No período histórico que atravessamos, em que a interacção social no sistema social global se objetiva com base nas capacidades de competição e de segregação social, quando as comunidades nacionais, regionais e étnicas se vêem incapacitadas de subsistir, utilizam as outras como bode expiatório das suas situações negativas. A "guerra contra o outro" assume uma preponderância capital na manutenção do poder por parte das classes dominantes e, por outro lado, alimenta a coesão e a identidade das comunidades nacionais que tendem a desintegrar-se socialmente. Nestas condições, apercebemo-nos como certas elites que lideram os nacionalismos e os integrismos religiosos socializam e controlam ideológica e politicamente os fenómenos da marginalidade e da segregação social existentes nos seus países.

Os problemas da pobreza e da desigualdade social demonstram, de forma inequívoca, a tragédia existencial humana actual (PNUD, 1994). Sem cair na averiguação fácil da existência de "sub-espécies humanas" estratificadas por níveis de vida abaixo do mínimo de subsistência vital, torna-se, no entanto, pacífica a afirmação de que a grande maioria dos 4.000 milhões de seres humanos dos países em vias de desenvolvimento estão submergidos pela fome, a pobreza e a exclusão social. Em contrapartida, grande parte dos 1.000 milhões que existem nos países desenvolvidos são constrangidos a levar uma vida quotidiana baseada na ostentação, produção e consumo de bens e serviços efémeros.

Tendo em atenção os milhões de seres humanos que pululam no pântano do genocídio, da miséria e da pobreza gerada nos grandes aglomerados urbanos da África, da Ásia e da América Latina, há também que não esquecer a outra versão da miséria e da pobreza urbana existente no "eldorado" dos países do mundo capitalista considerado desenvolvido. Estes últimos, muito embora demonstrem que têm "estatísticas positivas, com indicadores sociais sobre o saneamento básico, políticas assistenciais nos domínios da educação, saúde e segurança social estatais para a maioria da população, estão, no entanto, mergulhados no asfalto do desemprego, da indiferença e da exclusão social.

Um outro fenómeno crítico da modernidade do desenvolvimento capitalista à escala mundial é visível na emergência dos movimentos sociais e guerras regionais estruturados pelo nacionalismos e integrismos religiosos actuais. O etnocídio, o racismo e a xenofobia são outras manifestações articuladas com uma realidade socioeconómica, política e cultural que evolui no mesmo sentido racional-instrumental capitalista.

Como primeira abordagem desses fenómenos, dir-se-ia que todos eles têm causas lógicas comuns, se pensarmos nas consequências geradas pelo desmembramento do "socialismo real" nos países do leste europeu e, sobretudo, olharmos para o desemprego que afectam todos os estratos sócio-profissionais clássicos na Europa Ocidental. Importa, por outro lado, pensar as próprias consequências da fome e da pobreza que atravessam certas regiões na África, América Latina e Ásia e as suas correlações com os surtos migratórios e a segregação social existente entre as diferentes identidades étnicas e nacionais.

A explicação mais plausível das suas causas não deve, não obstante, servir para omitir a função negativa que assumem esses fenómenos. O nacionalismo, o integrismo religioso, o racismo e a xenofobia, na medida em que se apoiam em modelos sociais tendentes a estruturar-se numa perspectiva unidimensional e segregacional negam, com facilidade, a alteridade sócio-cultural, política, económica e religiosa a identidade dos outros povos, etnias e comunidades que compõem as múltiplas sociedades humanas do planeta Terra. As práticas humanas de cooperação e da solidariedade inter-étnicas e inter-comunitárias dos povos e nações são destruídas. Em alternativa, persiste a lógica de uma guerra imperialista confinada a interesses económicos e políticos geo-estratégicos, mas simultaneamente fundamentada no extermínio das diferenças sócio-culturais que as outras comunidades étnicas personificam.

2. Características do modelo de desenvolvimento que funciona como paradigma dominante

Genericamente, o conceito de desenvolvimento, situado nos parâmetros da lógica do progresso e da razão, consubstancia-se na melhoria progressiva e equilibrada do homem em termos de "bem-estar" económico, social, cultural e político. Esta visão apoia-se na quantificação e comparação de um conjunto de indicadores qualitativos específicos, considerados os mais representativos para um dado período histórico do desenvolvimento. Assim, quando se comparam o nível de desenvolvimento entre países, tem-se presente os índices que especificam o produto nacional bruto, o produto interno bruto, o rendimento "per capita", taxas de alfabetização, taxas de mortalidade e natalidade, número de telefones e automóveis por habitante, número de hospitais e médicos por habitante, etc...

O desenvolvimento, nestas circunstâncias, avalia-se em função de um "bem-estar" instrumentalizado pela quantidade de bens e serviços que uma dada sociedade pode usufruir. O conceito de "países desenvolvidos" e "países subdesenvolvidos" ou ainda de "países em desenvolvimento" é concebido em função dessa visão analítica.

Esta concepção histórica da evolução das sociedades traduz-se num modelo de desenvolvimento que procura explicar o passado, em função do presente e o devir harmónico da sociedade capitalista. As variáveis que estruturam o modelo de desenvolvimento capitalista expressam a eliminação progressiva da dependência do homem em relação ao poder divino no sentido da sua transformação em uma entidade antropocêntrica. A base materialista da produção de bens e serviços de características capitalistas provoca progressivamente a separação do sagrado e do profano, ao mesmo tempo que estrutura a independência e a autonomia dos indivíduos na esfera do mercado e a sua adesão ideológica às normas e valores sócio-culturais identificados com uma racionalidade económica baseada na maximização do lucro.

O processo interactivo do progresso e da razão materializou-se também na formação do "Welfare State" e no Estado-providência. Estes, conjugados com acção da racionalidade económica mercantil aumentou os índices de produção e consumo de saúde, educação e habitação, como inclusivé, sancionaram as inovações e mudanças operadas no campo do trabalho, da tecnologia e da ciência. Essas funções permitem que haja simultaneamente um crescendo progressivo de produção e consumo de bens e serviços múltiplos. Deste modo, o modelo de desenvolvimento do capitalismo satisfaz, como sistema paradigmático, as necessidades básicas dos indivíduos e grupos que compõem as sociedades actuais. Para tal basta que haja uma repartição de rendimentos propiciadora de um consumo de um conjunto de necessidades básicas padronizadas num conjunto típico de bens e serviços circunscritos à alimentação, habitação, saúde, educação e transportes. Esgotando-se esse patamar de necessidades padronizadas, o modelo de desenvolvimento capitalista alarga e aprofunda a sua matriz do progresso e da razão. Novas necessidades básicas são criadas e não admira que hoje se corporizem no lazer, turismo, actividades lúdicas, jogos de guerra, espaços livres, ambiente despoluído, etc... (PASSET, 1979).

Averiguando, no entanto, a realidade política, cultural, económica e social que sustenta e reproduz esse modelo de desenvolvimento, deparamos com grandes contradições e antagonismos.

Em primeiro lugar, assiste-se à desintegração das virtualidades positivas do homem antropocêntrico capitalista. Este para além de ser um objecto produtor e consumidor de bens e serviços, transformou-se basicamente numa entidade depredadora e destruidora de si próprio e da natureza. Esta contradição não somente alienou o homem das suas funções criativas cruciais nos domínios da actividade política, cultural e social, mas sobretudo transformou-o numa função competitiva e concorrencial de todos os outros que com ele interagem às escalas local, regional, nacional e transnacional.

Em segundo lugar, as relações sociais capitalistas baseiam-se em funções hierarquizadas, onde tarefas e funções, assim como o poder e a autoridade obedecem a uma lógica de dominação. Indivíduos e grupos com tarefas, funções, poder e autoridade sustentadas pela dominação e a exploração do homem pelo homem, fomentam uma desigualdade social corporizada em privilégios, rendimentos, propriedade, exercício do poder e apropriação de riqueza diferenciada, etc... Essa exploração e dominação observa-se fundamentalmente nas relações sócio-organizacionais entre empresários, gestores e assalariados subalternos, na relações entre homem e mulher, nas relações entre estratos sócio-profissionais, entre o Estado, indivíduos e grupos que compõem a sociedade civil, etc..., e, quando nos situamos numa escala geográfica universal, entre etnias, o Estado-Nação e instituições transnacionais.

Em terceiro lugar, o sistema democrático representativo capitalista não funciona em exclusiva sintonia com as virtualidades do mercado e da liberdade humanas. A racionalidade sociobiológica do ser humano "capitalista" e os predicados de regulação do mercado tão queridos de Darwin e Malthus, como dos liberais modernos, não funcionam plenamente. Por tais motivos, para suprir as insuficiências da integração e controlo social subjacentes à dinâmica social das sociedades actuais, o Estado, indivíduos e grupos recorrem a formas violentas e irracionais a fim de manterem o "status quo".

Nestes termos, observamos que as relações sociais nos planos institucional e organizacional são perpassadas por tipologias de exercício de poder baseadas na dominação, na qual a participação, a decisão e a concepção das actividades económica, política, cultural e social são arbitrariamente assumidas e partilhadas, sem que se nos apercebamos do carácter prescritivo e funcional das regras e normas que determinam o exercício da autoridade hierárquica formal.

O exemplo do Estado, de instituições e organizações com vocações repressivas, quando exercem as suas funções de socialização, são bem patentes na forma insuficiente e arbitrária como controlam, integram e sancionam todas as transgressões e potenciais desvios normativos desenvolvidos pelos indivíduos e grupos em relação à ordem social vigente.

Finalmente, a expansão universal do capitalismo tornou-o mais complexo e sofisticado. Como sistema social, as suas diferentes componentes quando estão em interacção, nem sempre funcionam como função de complementaridade e interdependência, de forma a construir sínteses positivas. A sua expansão geográfica revela-se demasiado abstracta e formal.

A longiquidade espaço-temporal embora seja mediatizada por uma interação social personificada pelas novas tecnologias e poder comunicacional dos "mass media", não tem evitado a artificialidade e a contradição nas relações sociais entre as diferentes partes que constituem a sociedade global. Por outro lado, as características competitivas do "homo economicus" atingiu um grande paroxismo. A sobrevivência da espécie humana persiste, mas à custa de uma socialização muito difícil. Os exemplos são elucidativos. Incapazes de se inserirem nos grupos, colectividades e sociedade, os indivíduos evoluem para múltiplas formas de morte e de desintegração social: desemprego, guerra, pobreza, violência, crime, droga, prostituição, etc.

Desde que o desenvolvimento capitalista erigiu o homem em entidade antropocêntrica, o progresso e a razão associados à racionalidade económica assumiram-se como função de espoliação e de transformação da natureza de forma abrupta e irreversível (WEINER, 1991). O capitalismo ao transformar o homem em objecto de produção e de consumo de mercadorias, transformou a natureza num espaço vital de parasitismo, na qual os recursos naturais tornaram-se uma fonte inesgotável dos desígnios de uma sociedade insaciável.

Como consequência, o homem deixou progressivamente os últimos laços de identidade que ainda mantinha com a natureza. Em vez de adaptar-se, reagir e regular as leis da natureza numa perspectiva de equilíbrio ecossistémico, transforma e destrói a unidade da diversidade criativa e dialógica dos diferentes seres que compõem o universo. Em função dos parâmetros determinísticos do modelo de desenvolvimento capitalista, a natureza em geral e todas as espécies vegetais e animais, em particular, são constrangidos a evoluir dentro dos parâmetros totalitários da racionalidade económica capitalista. Esta tem um objectivo central: transformação da matéria orgânica em matéria inorgânica, produzir, distribuir e consumir mercadorias.

O que hoje os políticos, cientistas, profetas e ideólogos da salvação do impossível denominam de "mau ambiente", decorre da sua visão apocalíptica e reformista. Facilmente chegam à conclusão de que se caminha para uma catástrofe ecológica, caso a sociedade não consiga inverter os efeitos da crise ambiental polarizada à volta do efeito estufa, da degradação da camada do ozono, da extinção da biodiversidade e do esgotamento e poluição dos recursos naturais (ROYAL, 1992). Está-se perante uma visão em que a degradação do ambiente é algo que pode ser objecto de reparação, regulação e controlo, bastando para tal reconstituir os equilíbrios ecossistémicos que, entretanto, foram destruídos.

Em presença de tais terapêuticas, tantas vezes testadas e frustradas, o mínimo que delas se pode depreender é a sua inoperância, já que após sucessivas aplicações, tudo isso não consegue evitar a mesma tendência suicidária.

Mais do que encontrar nos sintomas da crise ecológica uma forma airosa ideológica de omitir as causas que estão na origem da destruição do planeta Terra, torna-se necessário inferir que os problemas do ambiente não decorrem de causas exteriores à sociedade capitalista e que, desse modo, há que situar toda a análise na lógica normativa do desenvolvimento do capitalismo e, mais concretamente, na sua esfera de actividade económica mercantil (PASSET, 1992).

Objectiva e subjectivamente, o que importa referir radica no sentido da transposição mecânica que o capitalismo pratica, ao transformar a natureza num objecto de dominação e de hierarquização idêntico à ordem social que estrutura os processos de socialização e de regulação das relações sociais da sociedade capitalista (BOOKCHIN, 1989). A dominação e a hierarquização relacional que a espécie humana mantém com a natureza é modelada e projectada pelas exigências e contigências de uma a racionalidade mercantil concorrencial e competitiva. Recursos humanos e naturais fazem parte de uma lógica indissociável, em que meios e fins, se integram na consecução dos mesmos objectivos (SACHS, 1986). Não admira, portanto, que a ordem social capitalista transposta para o campo das relações do homem com a natureza resultem em transformações e configurações espaciais e físicas enquadradas numa determinada utilização do solo e do ordenamento do território e que estes, por sua vez, desenvolvam a crise ambiental e a destruição progressiva dos recursos naturais ainda disponíveis (PELT, 1991).

Esta evolução tem, no entanto, custos, limites físicos e sociais. A natureza não pode ser modelada impunemente através de uma entidade antropocêntrica orientada pelos objectivos imperativos do progresso e da razão que estão identificados com a racionalidade económica capitalista. Mantendo-se a irreversibilidade deste modelo de desenvolvimento, assistiremos inevitavelmente a um crescendo progressivo da deterioração ambiental a todos os níveis.

Não se pode, porém, racionar como se não persistissem interdependências e complementaridades entre os fenómenos ambientais e os que relevam da realidade sócio-organizacional. Nesse aspecto, assim como somos capazes de observar os efeitos negativos que relevam da ordem social sobre a natureza, interessa, por outro lado, também perceber as incidências que a própria destruição do ambiente tem sobre o modelo sócio-organizacional vigente.

A utilização e a apropriação do solo e as suas articulações com o ordenamento do território, assim como a poluição hídrica e atmosférica, como já referimos, estão bem patentes no processo de urbanização das sociedades.

As configurações sociais e físicas da urbanização traduzem-se num aumento da competitividade e da concorrência interpessoais e intergrupais, dando azo à construção de tipologias de interacção social padronizadas em formas específicas de apropriação e utilização do espaço vital que é imprescindível à vida quotidiana dos indivíduos e colectividades. Essa interacção social torna-se propícia à construção de territórios segregacionais que se identificam com a capacidade competitiva dos grupos e indivíduos e que, por sua vez, permitem a dinamização de uma acção individual colectiva orientada pela força constrangedora da sua representatividades social no contexto da sociedade global.

Por outro lado, a complexidade organizacional resultante das configurações físicas e sociais que emergem da regulação do mercado e do Estado constrange os sistemas de decisão e de controlo da sociedade civil a evoluirem para uma crescente burocratização e centralização. As relações entre os diferentes poderes instituídos, os indivíduos, as comunidades locais e regionais, as sociedades nacionais e transnacionais revelam-se progressivamente conflituais. O paradoxo é no mínimo contraproducente. É no mínimo contraditório que um sistema global, cada vez mais hegemónico e totalitário, crie instituições supra-nacionais, viva vicissitudes de crise ambiental de natureza universal e, na ocorrência, não consiga legitimar de forma idónea e funcional o seu sistema político.

Finalmente, a regulação e controlo das complementaridades e das interdependências físicas e sociais que subsistem à escala universal revelam-se difíceis de realizar pela entidade Estado-Nação. Em presença da destruição do ambiente gerado pela lógica do desenvolvimento capitalista, o Estado-Nação, enquanto entidade fiscalizadora dos recursos naturais e, por outro lado, gestor e planificador das políticas económicas, revela-se impotente perante a acção estruturante das economias subterrâneas de âmbito nacional e transnacional.

Este aspecto revela-nos que o Estado-Nação e as comunidades nacionais, regionais e locais não têm capacidade política e económica suficiente para adaptarem o ambiente à sua identidade sócio-cultural e fronteiras específicas, conseguindo um controlo eficiente na utilização e ordenamento dos seus espaços físico e social. No momento histórico actual verifica-se que a regulação do ambiente não é passível de gerir dentro dos limites das fronteiras territoriais, institucionais e administrativas do Estado-Nação clássico. Este último não é funcional e idóneo, não tem legitimidade nem poder suficiente para inverter o processo de destruição da natureza.

Depreende-se, por outro lado, que o Estado circunscrito ao espaço nacional tem extrema dificuldade em controlar atempadamente as variáveis sócio-culturais, económicas e políticas em que se apoia o actual desenvolvimento capitalista, de forma a poder inverter os factores relacionais humanos que originam a destruição do ambiente. Nesta assunção, a atomização da acção social das comunidades locais, regionais e nacionais só é explicável pela crescente subalternização e dependência hierárquica que mantêm em relação Estado supra-nacional emergente. O indivíduo, por outro lado, ao ser transformado num puro objecto de produção e consumo de mercadorias com simbologia e proveniência universal, revela-se, cada vez mais, uma entidade amorfa e alienada, o que o leva a comportar-se como uma entidade anómica desprovida de sentido, de participação e decisão em todos os níveis espaciais em que se encontra inserido.

Em presença desta nova configuração mundial estabelecida entre um Estado totalitário e o crescente amorfismo da capacidade das comunidades nacionais, regionais e locais, não é de admirar que as grandes organizações supra-nacionais assumam a liderança dos processos de transformação, controlo e regulação do sistema social global, a fim de inverter o colapso apocalíptico da natureza e a destruição do ambiente provocado pelo desenvolvimento capitalista. O exemplo dos últimos relatórios do Banco Mundial e a Eco-92 do Brasil, organizado sob os auspícios da ONU, é bem a demonstração da impossibilidade e fragilidade da acção do Estado, das instituições, organizações e indivíduos que se inserem nessas escalas sócio-espaciais.

3. Potencialidades de uma ecologia social anarquista face à crise do modelo de desenvolvimento capitalista

Como verificámos nos capítulos precedentes, uma parte substancial dos cientistas que abordam as relações do homem com o ambiente, omitem o carácter indissolúvel dessa relação no quadro de categorias conceptuais sistémicas. Assim, tanto encontramos análises que vão no sentido de uma naturalização absoluta e conservadora do homem, referenciando este como uma entidade exclusivamente biológica e natural, perdendo-se dessa forma a sua essência criativa sócio-cultural que se manifesta na capacidade e possibilidade de construir modelos de organização social diferentes daqueles que são próprios às outras espécies animais e vegetais. (MALTHUS, s/d). Num sentido oposto, encontramos análises que estipulam deterministicamente a autonomia da espécie humana em relação ao seu ambiente, transformando-a numa espécie de sociologismo orgânico que se explica de forma específica e autónoma, sem para tal sujeitar-se às contingências da interacção e interdependência com o meio ambiente (DURKHEIM, 1975)

É facto que não podemos prescindir de analisar a contribuição de alguns autores que ultrapassaram esta visão dicotómica das articulações e integrações dos espaços social e físico. Desde a década de 1920 que um grupo de investigadores da universidade de Chicago observou e analisou a influência do ambiente sobre os comportamentos humanos, referenciando as formas e conteúdos das configurações espaciais físicas e sociais que decorriam de uma matriz social diversificada corporizada na acção colectiva das múltiplas comunidades e etnias, com identidades sócio-culturais e capacidades concorrenciais e segregacionais específicas. Robert Park, Ernest Burgess, Louis Wirth e outros puderam, desse modo, enveredar por uma abordagem sociológica que permitia percepcionar e explicar o homem e a natureza numa perspectiva ecológica e humana (PARK, BURGESS, McKENZIE, 1967).

Na continuidade desta linha de pensamento científico, hoje, persiste uma abordagem mais sistematizada e enquadrada na crise ecológica da sociedade capitalista ao ponto de alguns investigadores contemporâneos, a partir da década de 1970, desenvolverem um conjunto de postulados teóricos conducentes à criação de uma disciplina denominada Sociologia Ambiental e, inclusivé, com intenções de a transformarem num novo paradigma ecológico (CATTON e DUNLAP, 1980).

Estes trabalhos científicos têm indiscutivelmente um grande mérito. Face à crise interpretativa e explicativa dos múltiplos fenómenos relacionados com ambiente, eles tentam averiguar, de forma pertinente, os efeitos perversos mais representativos que emergem da actual crise ecológica do modelo de desenvolvimento capitalista. As suas análises pecam, no entanto, por uma série de limitações e contradições. Circunscrever os problemas da crise ecológica a uma racionalidade populacional e humana, de forma alguma pode-nos permitir culpabilizar e responsabilizar a espécie humana, os grupos e os indivíduos como um todo identitário e homogéneo na sua condição-função de depredadora do equilíbrio ecossistémico. A acção colectiva e individual não pode ser analisada fora do tipo de sociedade em que elas se inscrevem. A ordem social capitalista, com as suas estruturas e modelos institucionalizados de cultura normativa, só legitima relações sociais hierárquicas e de dominação que se identificam com as funções de produção e de consumo de bens e serviços e, logicamente, com o consequente agravamento da crise ambiental.

Por estas razões, essas análises são redutoras. Nestas circunstâncias, torna-se impossível omitir as causas sócio-culturais, políticas e económicas que corporizam o modelo de desenvolvimento capitalista e, logicamente, a sua função estruturante na modelação das estruturas sociais hierarquizadas e de dominação que se traduzem num conjunto de regras e normas tipificadas por comportamentos humanos que, em última instância, determinam os seus padrões de interacção com a natureza. O ambiente é o resultado desse processo interactivo.

Partindo desta perspectiva, observa-se que as contradições e antagonismos subsistentes residem no modelo de produção e de consumo de bens e serviços que acompanha a evolução da racionalidade económica capitalista. Esta é perpassada pela concorrência e competição mercantil e regulada socialmente por estruturas e relações sociais pautadas pela opressão e exploração do homem pelo homem. A personificação dessa realidade é averiguável pela condição-função de classes sociais, estratos sociais, etnias e castas hierarquizadas e estratificadas por escalas de rendimento, prestígio social, poder e posse de riqueza, como também pelas relações sociais de âmbito mais geral personificadas por uma condição/função de nível etário (velho/jovem), sexual (homem/mulher), e social (empregado/desempregado), etc ...

Como não se pode percepcionar a crise do ambiente e da sociedade exclusivamente a partir de uma visão ecológica naturalista, também não nos parece possível fazer o mesmo através de análises centradas num sociologismo com os seus efeitos perversos e disfuncionais.

Em relação ao pensamento de outros autores procura-se associar a crise do ambiente e da sociedade a partir das características estruturantes da revolução tecnológica em curso e a natureza da pressão demográfica (FNUAP, 1992). Segundo estes, para superar a actual crise social e ecológica, bastaria reestruturar as tecnologias e adaptá-las ao meio ambiente de modo a torná-las menos depredadoras dos recursos naturais e menos poluidoras da biosfera. Se possível, elas deveriam não causar tantas mortes através das diversas guerras regionais e locais e, inclusivé, deveriam adaptar-se a funções circunscritas à saúde e educação e, sobretudo, fortalecer e aperfeiçoar a sua utilização sistemática em métodos científicos anti-concepcionais, de forma a inverterem e/ou estacionarem o surto de crescimento demográfico, miséria e a fome que ocorre na generalidade dos países do hemisfério Sul.

Esta hipótese científico-tecnicista que pretende superar as excrecências populacionais mais significativas da crise do modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista à escala mundial é, muitas vezes, confrontada outras que têm menor representatividade social: a naturalista-conservadora e a eco-tecnocrática. A primeira procura solucionar a crise do modelo de desenvolvimento capitalista, com um retorno às configurações sócio-históricas do passado, tentando fazer tábua rasa da historicidade dos construídos sociais que foram estruturados por uma matriz sócio-cultural secular. A segunda procura transformar o homem antropocêntrico numa categoria divina semelhante ao poder das máquinas e dos deuses.

Estamos, neste caso, a pensar o "homem" como uma realidade omnipotente e omnisciente, com capacidades e possibilidades ilimitadas de inovação e de mudança em todos os aspectos da vida social e humana. Os defensores da sociobiologia dão-nos algumas pistas nos campos da engenharia genética e social (BOOKCHIN, 1990).

Todas essas perspectivas são redutoras e enfermam de um conjunto de contradições. A visão naturalista-conservadora, que é actualmente personificada pela maioria dos grupos ecologistas, esquece que o homem enquanto entidade auto-consciente e auto-reflexiva evolui num processo histórico, da qual é impossível dissociar o presente do passado e do futuro. Todo esse processo é um elo com laços contínuos e descontínuos. Nesta dimensão, só pode ser analisado e interpretado como um fenómeno estruturado por factores de natureza reversível e irreversível.

A visão eco-tecnocrática pensa que é possível re-equacionar a relação do homem com a natureza através de uma função ilimitada do poderio dos meios técnicos e científicos, atribuindo-se um poder diabólico à espécie humana, como se esta pudesse assumir um domínio absoluto e arbitrário sobre si, sobre as outras espécies e própria natureza (PASSET, 1979). Nesta perspectiva, poderíamos até pensar num "admirável mundo novo" personificado por uma espécie humana modelada geneticamente, adquirindo, posteriormente, ela mesmo uma capacidade e possibilidade de criar e modelar a natureza à sua imagem e semelhança.

Face ao actual cenário da crise do modelo de desenvolvimento capitalista não se vislumbra que o pragmatismo conjuntural das políticas económicas dos estados, nem a racionalidade económica do mercado capitalista, possam inverter ou superar essa realidade. Por outro lado, manifestamente, todos os modelos analíticos, que se identificam científica e ideologicamente com o paradigma explicativo dominante, não conseguem interpretar de forma eficiente e coerente a crise que atravessamos, de forma a que se possa eventualmente verificar remediar algumas das contradições e antagonismos da sociedade capitalista.

Tendo presente o legado histórico do pensamento e da acção social emancipalista, em face dos problemas que estamos a presenciar à escala mundial, surge-nos um dilema ambiental e social de proporções gravíssimas. Neste contexto, a ecologia social de características anarquistas tem um conjunto de virtualidades que urge referenciar e potenciar nas nossas sociedades.

Mais do que inverter a lógica de evolução do sistema social global, importa, desde já, referir que a espécie humana é, acima de tudo, uma entidade que evolui através de um processo histórico pautado pela estruturação de uma auto-consciência progressiva e que, em função das suas capacidades e possibilidades ontológicas, adopta modelos de auto-governação e de auto-organização que a pode racionalmente diferenciar das outras espécies vegetais e animais. É nesta especificidade estrutural ontológica que podemos compreender, em grande parte, a sua evolução gregária no sentido da construção da sociedade, passando de modelos sociais simples para modelos sociais complexos. Os pressupostos da socialização e da sociabilidade humana, nessa assunção, só foram possíveis de concretizar na medida em que o ser humano conseguiu articular-se com a natureza de uma forma dialógica.

Com base nestes princípios básicos, facilmente chegamos à conclusão que as relações do homem com a natureza não são deduzíveis de meras reacções adaptativas contingenciais impostas pelo poder inerente à natureza. A relação do homem com a natureza, neste sentido, não pode apoiar-se numa visão restritiva circunscrita às necessidades da sua sobrevivência material. Enquanto elemento da natureza que interage com milhões de seres vegetais e animais, o homem só pode partilhar e viver nessa mesma natureza como parte de um todo indissolúvel ecossistémico. Assim sendo, esse imperativo crucial só é passível de realizar através da transformação do homem numa entidade auto-consciente e humanizada, com a capacidade virtual e real de construir um modelo sócio-organizacional identificado com a sua essência humanista e emancipalista, alicerçada em relações sociais pautados pela fraternidade e a solidariedade.

Nesta perspectiva, torna-se impossível pensar a ecologia sem alargar a sua dimensão fenomenal ao quadro epistemológico e metodológico da sociedade global em que persistimos. Na estrita medida em que as relações do homem com a natureza são mediatizadas por relações de tipo reflexivo e organizacional, a ecologia, em última instância, é e só pode ser de natureza social.

Integrando-me no princípio tantas vezes já demonstrado de que é possível racionar e agir de uma maneira radicalmente diferente a que estamos habituados, a tragédia da crise social e ecológica que vivemos é passível de ser superada. Neste sentido, para tornar operacional o conceito de ecologia social, enquanto fenómeno de auto-consciência, de auto-governação e de auto-organização do ser humano, somos constrangidos à admissibilidade da exigência de uma transformação radical da sociedade em que persistimos (KROPOTKINE,1906; BOOKCHIN,1976). Essa transformação radical da sociedade capitalista à escala universal implica a desestruturação da organização social, política, cultural e económica baseada em relações sociais hierarquizadas e na dominação. Ela passará, ainda, por uma redefinição radical do homem em relação à natureza, o que implica a criação e a dinamização de novos padrões de interacção social, tipificados por comportamentos humanos conducentes à manutenção e regulação de um novo equilíbrio ecossistémico assente na biodiversidade das diferentes espécies animais e vegetais (BOOKCHIN, 1976).

De maneira a dar forma e conteúdo a essa exigência de transformação radical da sociedade capitalista e, por conseguinte, do seu modelo de desenvolvimento, o projecto de sociedade de ecologia social anarquista deve apoiar-se essencialmente na criação de eco-comunidades às escalas local, regional, nacional e transnacional. A integração e a articulação dessas realidades singulares estruturar-se-ão num sistema global de relações sociais fraternas e solidárias através de uma rede orgânica coordenada e regulada por laços federativos e confederais à escala universal. É uma alternativa de sociedade que supera os antagonismos e contradições da exploração e opressão capitalista, mas que também supera as causas e os efeitos perversos de um conjunto de factores: centralização, burocratização, concentração e complexidade organizacional e social; inexistência de participação e de decisão dos indivíduos e grupos nas colectividades e sociedade; desintegração e anomia social.

O quadro epistemológico e metodológico da ecologia social tem as suas raízes históricas nos princípios e práticas do anarquismo. Essa plausibilidade é pacífica de demonstrar através dos indícios de certas experiências históricas já realizadas (Comuna de Paris- 1871, Revolução Russa-1917-1921, Guerra Civil em Espanha-1936-1939, etc...) como, ainda, é personificada pelas obras de alguns autores anarquistas mais emblemáticos: Proudhon, Bakunine, Kroptokine, Malatesta e, modernamente, Murray Bookchin. Hoje, a ecologia social baseada nos princípios e práticas anarquistas, que tem sido analisada e dinamizada desde o século XIX, revela-se reforçada nas suas potencialidades históricas, nos domínios científico e social, a partir de várias dimensões.

Em primeiro lugar, a dicotomia que subsiste entre a cidade e o campo chegou ao extremo de um paroxismo sem fim. As cidades, enquanto construídos sociais gigantescos, transformaram-se progressivamente em objectos de desintegração e segregação social, de violência, de marginalidade social e alienação. Por outro lado, revelam-se um mundo de miséria e de promiscuidade física e social, onde pessoas, objectos, resíduos sólidos, líquidos e gasosos se confundem e atrofiam num labirinto que caminha inexoravelmente para uma catástrofe ecológica (MUMFORD, 1982). Perante o seu gigantismo, complexidade sócio-organizacional e irreversibilidade destruidora dos aglomerados urbanos, os habitantes que neles vivem, estando desprovidos do exercício de uma cidadania plena, não participam, não concebem, nem planeiam, nem decidem sobre o governo e a gestão das suas cidades.

Para a ecologia social anarquista impõe-se criar as condições sócio-organizacionais que possibilitem extinguir progressivamente os atuais aglomerados urbanos, de forma a tornar compatíveis as articulações e regulações da organização dos espaços físico e social e, por conseguinte, viabilizar as hipóteses de construção de um equilíbrio harmonioso entre o homem e a natureza e permitir o restabelecimento da biodiversidade ecossistémica. As cidades devem configurar-se em comunidades populacionais geríveis no sentido da sua auto-governação e auto-organização. Quer em relação aos equipamentos colectivos, quer no tocante a infra-estruturas, produção e distribuição de bens e serviços, etc..., sem exceção, devem ser objecto de uma auto-regulação confinada à soberania do agregado populacional urbano. Todos os aspectos económicos, sócio-culturais e políticos estão integrados nesse processo de modo harmonioso, estando os habitantes, das respectivas comunidades urbanas, dotados de uma ação social inteligível e construtiva. Acima de tudo, ela é soberana em todos os aspectos relacionados com a decisão e a participação nas múltiplas funções e tarefas que estão envolvidas na cidadania urbana.

Essas comunidades urbanas não podem atingir uma dimensão populacional que ponha em causa a soberania dos seus habitantes. Os princípios e as práticas da democracia directa, implicam que as relações sociais sejam visíveis e directas e os pressupostos relacionais de toda a organização social não se coadunam com funções e tarefas assentes na hierarquia de uma hipotética autoridade formal. O poder de decisão sobre toda a governação e gestão das cidades está nas mãos dos habitantes da cidade. Indivíduos e grupos interagem no sentido da sua liberdade específica, tendo sempre presente que existe a liberdade dos outros e que as próprias comunidades urbanas livres são a sua síntese genuína. As relações sociais informais atravessam todo o tecido social urbano, submetendo as funções coordenação e regulação de tipo formal a uma reversibilidade e rotatividade sistemática.

Neste aspecto, certas virtualidades intrínsecas do campo que ainda perduram, pode-nos servir de exemplo. Para tal, basta observá-lo como espaço potencial de recursos naturais e, por outro, como modelo hipotético de organização social estruturado por relações e interacções sociais baseadas no interconhecimento, na concepção, decisão e participação das pessoas no quadro da sua vida quotidiana e comunitária. Isso, no entanto, não obsta a que a actual realidade sócio-organizacional, económica e política do espaço rural tenha também que sofrer uma transformação radical.

Com virtualidades específicas próprias, o espaço rural deve ser concebido e construído num sentido sócio-organizacional autónomo e equilibrado. Enquanto contexto particular inserido numa realidade sócio-organizacional global só pode subsistir numa base de complementaridade e de interdependência com o espaço urbano. As comunidades rurais não podem ser o prolongamento lógico da estruturação unidimensional imposta pela urbanização capitalista. Na medida em que as comunidades rurais tem menor complexidade sócio-organizacional, só nesse capítulo se pode diferenciar das comunidades urbanas. A auto-suficiência económica, sócio-cultural e política traduzir-se-á inevitavelmente numa realidade semelhante àquelas que se desenvolvem nos contextos considerados urbanos.

Em segundo lugar, a oposição que subsiste entre o Estado e as diferentes comunidades urbanas e rurais deriva de um sistema hierárquico centralizado e burocratizado. São relações de coordenação e de controlo dos indivíduos e das colectividades legitimadas pelo uso da função repressiva da jurisprudência e da coação física das instituições militar e policial. Simultaneamente, a própria manutenção do Estado implica que o mesmo exerça uma espoliação sistemática dos recursos humanos naturais, financeiros e humanos que pertencem, em geral, à sociedade civil, às comunidades locais e regionais e, particularmente, aos indivíduos.

O Estado, para além disso, transformou-se num aparelho burocratizado e totalitário através das suas funções de representatividade social e de autoridade formal, no exercício tutelar das actividades políticas, sócio-culturais e económicas. Esse facto, levou-o a distanciar-se e a oprimir a sociedade civil que "legitimamente" dirige e representa. Tornou-se inútil e disfuncional, mas simultaneamente demasiado perigoso, na medida em que mantém nas suas mãos poderes discricionários absolutos que resultam na utilização massiva de meios tecnológicos e militares sofisticados. As guerras fomentadas pelos estados levam à destruição irracional de recursos humanos e naturais. Elas atingem proporções inauditas, ao ponto de revelarem-se catastróficas para a sobrevivência da própria humanidade.

Tudo isso é explicável, segundo aqueles que defendem a perpetuação do Estado, porque os indivíduos e as respectivas comunidades não são capazes de se auto-organizarem e auto-governarem. No sentido da perspectiva de Hobbes, o homem transformar-se-ia em lobo do próprio homem. Na ocorrência, os indivíduos e os grupos criaram e desenvolveram o Estado.

É no mínimo uma posição que não se coaduna com a realidade. Hoje, os fenómenos de desintegração e marginalidade social são genuinamente efeitos perversos de causas que residem na função e acção do Estado. Olhe-se para o exemplo da droga e da violência que perpassam as sociedades actuais. A polícia, os tribunais, os serviços de saúde e educação actuam no sentido de eliminarem e controlarem esses "flagelos" da sociedade. No mínimo são medidas aberrantes para um Estado e uma sociedade que funciona nos parâmetros da lógica da racionalidade mercantil. Se a droga e o crime são objectos de compra e venda deduzida da liberdade dos indivíduos no espaço do mercado. Se os mesmos estão em consonância estreita com a racionalidade dos meios e dos fins para se obterem lucros, não se compreende porque é que o Estado e as suas instituições são chamados a intervir nesse processo.

No fundo, a função e a acção do Estado confina-se a controlar e a reprimir indivíduos e grupos que não pensam, não decidem, nem reflectem sobre as suas vidas em termos autónomos e livres. O que o Estado controla e reprime são indivíduos e grupos amputados de uma motivação assente em princípios e práticas fundamentados na liberdade, fraternidade e na solidariedade. No sentido amplo, a plausibilidade da erradicação hipotética da droga e do crime, passa previamente pela destruição das suas causas: o Estado.

Em oposição a essa realidade estatal, as comunidades e colectividades de âmbito local e regional têm capacidades e possibilidades de auto-organização e de auto-governação superiores ao Estado. São entidades capazes de reflectir e organizar os recursos naturais e os recursos humanos com maior facilidade (CASTORIADIS, 1990).

Com relações sociais baseadas no interconhecimento e uma identidade com o meio ambiente, torna-se possível produzir, distribuir e consumir bens e serviços em termos harmoniosos. Todas as relações internas e externas dinamizadas pelas diferentes colectividades devem ser pautadas com base na reciprocidade e igualdade, extinguindo-se as razões da trocas baseadas no lucro, na opressão e exploração do homem pelo homem. Nesta assunção, pode-se prescindir do Estado e de outras instituições, na estrita medida que à escala espacial local, regional, nacional e transnacional, os indivíduos, grupos e colectividades diferenciadas assumiam uma soberania plena numa federação universal de povos e etnias.

Em terceiro lugar, os modelos de produção e de consumo centrados nos sectores industrial e terciário tendem a destruir progressivamente as virtualidades reais do sector agrícola e, simultaneamente, desenvolvem assustadoramente a destruição do meio ambiente e, naturalmente, a desintegração do tecido social através da marginalidade social e do desemprego.

Nunca é demais referir que as causas dessa evolução radicam essencialmente no modelo de desenvolvimento capitalista apoiado numa racionalidade económica que se alimenta de uma competição e de uma concorrência mercantil desenfreada. Esta lógica normativa só pode manter-se com a produção e o consumo gigantesco de bens e serviços.

No entanto, o crescendo progressivo desse processo chegou a um paroxismo tal que o homem, enquanto entidade produtora e consumidora de objectos, destruiu milhares de espécies, esgotou os recursos naturais, transformou a matéria orgânica em matéria inorgânica de forma absurda e está, simultaneamente, a auto-destruir-se como ser humano. O risco é, portanto, duplo. Destrói-se a Terra e os seres que nela vivem e desintegram-se as estruturas sociais que compõem as sociedades. O retorno a um equilíbrio entre os sectores agrícola, industrial e terciário implica que os modelos de produção e de consumo deixem de estar orientados e submetidos aos imperativos do lucro, da concorrência e da competição entre os seres humanos (GORZ, 1991). O mercado e o Estado funcionam como entidades externas dos interesses e motivações dos indivíduos e grupos que compõem a sociedade capitalista. São eles que decidem, em última instância, como se produz, consome e distribui a riqueza. Ou seja, quem trabalha, quem não trabalha. Quem é rico ou pobre. Quem detém poder ou não.

Para os indivíduos e grupos que vivem nas actuais sociedades, torna-se imperioso extinguir as funções e as estruturas de socialização e de sociabilidade dos indivíduos e grupos, cuja proveniência decorre da racionalidade económica capitalista e do Estado. A autogestão da produção, da distribuição e o consumo de bens e serviços, estritamente identificada com as necessidades soberanas dos indivíduos e colectividades inseridas nos diferentes espaços locais e regionais à escala universal, revela-se, nestas condições, cada vez mais, pertinente. A participação e a decisão dos indivíduos e grupos em todo o processo autogestionário desenvolve-se harmoniosamente. A democracia directa impõe-se como modelo relacional básico, dando lugar a que todos os indivíduos e grupos tenham uma participação e decisão efectiva em todos os aspectos do funcionamento interno e externo das colectividades em que estão inseridos. A autogestão torna-se uma função pacífica de socializar entre todos os membros das diferentes colectividades, na medida em que a sua essência intrínseca apela à criatividade, à espontaneidade, à liberdade e responsabilidade de todos os indivíduos. Por outro lado, a autogestão de características anarquistas induz a que persista uma identidade real entre o produtor, o consumidor e o homem trabalhador.

Como consequência lógica dessas hipóteses, haverá que olhar para a natureza como a mãe de tudo aquilo que se produz e consome. A depredação do ambiente e apropriação e utilização de bens e serviços como objectos efémeros, como inclusivé o desperdício e o lixo que resultam das diferentes actividades humanas terão que ser totalmente reestruturados, ou substancialmente extintos, de forma a reencontrar o equilíbrio entre o homem e a natureza. O ordenamento do território e a utilização do solo, os equipamentos colectivos e as infra-estruturas, tecnologias, etc, serão sempre expressão de um modelo de produção e de consumo que se orienta e traduz em práticas humanas pautadas pela solidariedade e o apoio mútuo, onde coexistem a liberdade individual e social, mas onde também a criatividade e a responsabilidade estarão sempre presente.

Finalmente, a organização social, económica, política e cultural identificada com os parâmetros da ecologia social anarquista terá que generalizar-se à escala universal e estruturar-se organicamente em termos autogestionários e federativos. Qualquer hipótese de emergência organizacional centralista ou burocrática, neste contexto, não se afigura plausível, na medida que a força estruturante das múltiplas colectividades, grupos e indivíduos federados nas diferentes escalas espaciais assumem uma soberania plena. A motivação e a identificação entre o homem e a natureza, neste âmbito, assume-se a uma escala universal. Bens e serviços, recursos naturais, florestas, rios, mares, etc..., fazem parte de um todo indissolúvel, que não pertence a uma colectividade específica, mas a um legado indelével da natureza e da comunidade universal.

Mais de qualquer outra razão e mais além de qualquer pressuposto realista da sociedade capitalista, é na sua essência universal e emancipação humana que o anarquismo se fundamenta. Assim sendo, há espaço interventivo de construção social sustentado pela auto-organização dos indivíduos e dos grupos, com uma interacção social suficientemente capaz de apoiar-se no interconhecimento e na democracia directa e dinamizar, por essa via, uma auto-consciência e um auto-governo corporizados em acções individuais e colectivas identitárias nas múltiplas colectividades que compõem a sociedade global.

As diferentes colectividades, grupos e indivíduos localizadas aos níveis espaciais local, regional, nacional e transnacional, opor-se-ão ao centralismo burocrático e repressivo do Estado-Nação e do imperialismo das entidades estatais supra-nacionais. Elas têm virtualidades que podem-se tornar reais. Através dos indivíduos, grupos e movimentos sociais podem-se difundir práticas, teorias, manifestações, etc..., que decorrem de um projecto de sociedade anarquista. Mais do que nunca, as hipóteses de auto-organização e auto-reflexão no sentido da libertação da espécie humana impõem-se.

Na medida em que toda a acção individual e colectiva inserida nos espaços locais, regionais, nacionais e transnacionais são progressivamente mais interdependentes e complementares, a construção de sínteses no âmbito do espaço mundial revela-se fulcral. Essa virtualidade, tantas vezes considerada utópica, pode tornar-se real. Hoje, podermos pensar e praticar a anarquia como algo natural e do domínio do possível. É pacífico começarmos a construirmos um movimento social suficientemente forte de forma a darmos início à extinção da sociedade em que persistimos. Para isso, basta aprender com o passado, olhar para o presente e lutar pela construção de uma sociedade futura baseada nos princípios e práticas da democracia directa, fraternidade, igualdade, solidariedade e liberdade.

J. M. Carvalho Ferreira