Murray Bookchin
A humanidade tem sido difamada
pelos próprios seres humanos, ironicamente como uma forma de
vida amaldiçoada que acima de tudo destrói o mundo vivo
e ameaça a sua integridade. À confusão que já
temos acerca do nosso próprio tempo e identidade pessoais, junta-se
agora a confusão de que a condição humana é
vista como uma espécie de caos produzido pela nossa tendência
para a destruição, e a nossa capacidade para o exercício
dessa tendência é tanto maior precisamente porque possuímos
razão, ciência e tecnologia. É até este ponto
absurdo que certos anti-humanistas, biocentristas e misantropos podem
levar a lógica das suas premissas.
Os problemas que muita gente
enfrenta hoje em dia para «definir-se» a si própria,
para conhecer «quem é» — problemas que alimentam
a vasta indústria das psicoterapias — não são
problemas apenas pessoais. Estes problemas existem não apenas
ao nível dos indivíduos mas na própria sociedade
moderna, entendida como um todo. Socialmente, vivemos numa desesperada
incerteza sobre o modo como as pessoas se relacionam entre si. Não
é só como indivíduos que sofremos de alienação
e confusão acerca das nossas identidades e objetivos; toda a
nossa sociedade, concebida como entidade, parece confusa quanto à
sua natureza e direção. Se sociedades mais antigas tentaram
fomentar a crença nas virtudes da cooperação e
do apoio, desse modo atribuindo um sentido ético à vida
social, a sociedade moderna fomenta a crença nas virtudes da
competição e do egoísmo, assim despojando a associação
humana de todo o seu significado — exceto, talvez, enquanto instrumento
de ganho e de consumo sem sentido.
Somos tentados a acreditar que
os homens e as mulheres de outros tempos eram guiados por convicções
e esperanças — valores que os definiam precisamente como
seres humanos e que davam sentido às suas vidas. Referimo-nos
à Idade Média como uma «idade de fé»,
ou ao Iluminismo como uma «idade da razão». Mesmo
na época anterior à Segunda Grande Guerra e nos anos que
se lhe seguiram parecia haver um tempo fascinante de inocência
e esperança, apesar do período da Grande Depressão
e dos terríveis conflitos que a mancharam. É como se durante
esses anos da guerra se fosse perdendo a inocência da juventude,
e com isso a sua «limpidez» — o sentido das intenções
e do idealismo que guiavam os comportamentos.
Essa «limpidez»,
hoje em dia, desapareceu. Foi substituída pela ambigüidade.
A confiança em que a tecnologia e a ciência iriam melhorar
a condição humana foi escarnecida pela proliferação
das armas nucleares, das fomes maciças no terceiro mundo e da
pobreza no primeiro. A ardente crença em que a liberdade triunfaria
sobre a tirania foi desmentida pelo crescimento da centralização
estatal um pouco por todo o lado e pelo enfraquecimento dos povos pelas
burocracias, pelas forças policiais e pelas sofisticadas técnicas
de vigilância — não menos nas nossas «democracias»
do que nos países mais ostensivamente autoritários. A
esperança em que viríamos a constituir «um único
mundo», uma vasta comunidade de variados povos que partilhariam
os seus recursos para melhorar a vida de todos, foi despedaçada
por uma crescente maré de nacionalismo, racismo e um insensível
paroquialismo que alimenta a indiferença perante a miséria
de milhões.
Pensamos que os nossos valores
são piores do que aqueles que tinham as pessoas apenas duas ou
três gerações atrás. A geração
atual parece mais autocentrada, isolada e conformada em comparação
com as anteriores. Perdeu os sistemas de apoio que eram assegurados
pelas redes familiares, pela comunidade, pelo empenho na ajuda mútua.
O encontro do indivíduo com a sociedade parece ocorrer mais por
frios procedimentos burocráticos do que por calorosos contatos
pessoais.
Esta falta de sentido e de identidade
social é a maior desolação, face aos crescentes
problemas com que nos confrontamos. A guerra é uma condição
crônica nos dias de hoje; a incerteza econômica, uma presença
constante; a solidariedade humana, um mito rarefeito. O menor dos problemas
que enfrentamos não é certamente o pesadelo de um apocalipse
ecológico — uma ruptura catastrófica dos sistemas
que mantêm a estabilidade do planeta. Vivemos debaixo da constante
ameaça de que o mundo vivo esteja irrevogavelmente minado por
uma sociedade enlouquecida pela sua necessidade de crescimento, substituindo
o orgânico pelo inorgânico, o solo pelo cimento, as florestas
por terrenos estéreis e a diversidade das formas de vida por
ecossistemas despojados; em resumo, um andar para trás do relógio
evolucionário, para um mundo mais antigo, mais inorgânico,
mineralizado, incapaz de suportar quaisquer formas complexas de vida,
incluindo a espécie humana.
A ambigüidade sobre o nosso
destino, o nosso sentido, o nosso propósito, faz levantar uma
questão assustadora: a sociedade é, em si própria,
uma maldição, uma praga para a vida em geral? Temos alguma
solução para este novo fenômeno chamado «civilização»
que parece estar num ponto de destruição de todo o mundo
natural, que foi o resultado de milhões de anos de evolução
orgânica?
Uma imensa literatura sobre estas
questões emergiu, ganhando a atenção de milhões
de leitores: uma literatura que fomenta um novo pessimismo em relação
à civilização, enquanto tal. Esta literatura cava
um fosso de antagonismos entre a tecnologia e uma natureza orgânica
presumidamente «virginal», a cidade e o rural, o rural e
o «selvagem», a ciência e uma «reverência»
pela vida, a razão e a «inocência» da intuição,
em suma, a humanidade contra a biosfera inteira.
Mostramos os sinais da perda
de fé na nossa ímpar capacidade humana — a capacidade
de viver em paz uns com os outros, a nossa capacidade de atender aos
outros seres humanos e às outras formas de vida. Este pessimismo
é alimentado diariamente pelos sociobiologistas, que pretendem
localizar as nossas falhas nos nossos genes, pelos antihumanistas que
lamentam a nossa sensibilidade «antinatural», e pelos biocentristas
que desdizem as nossas qualidades racionais com noções
de que não somos, em «valor intrínseco», muito
diferentes das formigas. Em resumo, testemunhamos o alastrar do assalto
contra as capacidades da razão, da ciência e da tecnologia
em contribuírem para a melhoria do mundo, para nós próprios
e para a vida em geral.
A idéia histórica
de que a civilização é, inevitavelmente, oposta
à natureza, e que portanto corrompe a «natureza humana»,
emerge entre nós ressurgindo da época de Rousseau, ou
seja, precisamente no momento em que a nossa necessidade de uma civilização
verdadeiramente humana e ecológica é maior que nunca,
se quisermos salvar o planeta e a nós próprios. A civilização,
com todas as suas marcas da razão e da tecnologia, é cada
vez mais vista como uma nova praga. Mais ainda, a sociedade enquanto
tal vem sendo tão posta em causa quanto o seu papel na formação
da humanidade é entendido como algo verdadeiramente «não-natural»
e intrinsecamente destrutivo.
A humanidade, com efeito, tem
sido difamada pelos próprios seres humanos, ironicamente como
uma forma de vida amaldiçoada que acima de tudo destrói
o mundo vivo e ameaça a sua integridade. À confusão
que já temos acerca do nosso próprio tempo e identidade
pessoais, junta-se agora a confusão de que a condição
humana é vista como uma espécie de caos produzido pela
nossa tendência para a destruição, e a nossa capacidade
para o exercício dessa tendência é tanto maior precisamente
porque possuímos razão, ciência e tecnologia.
É até este ponto
absurdo que certos antihumanistas, biocentristas e misantropos podem
levar a lógica das suas premissas.
O que é vital nesta mistura
de resmungos e meias idéias é que, afinal, as várias
formas de instituições e de relações que
compõem aquilo a que chamamos sociedade são largamente
ignoradas. De fato, o uso de expressões genéricas como
«humanidade» ou de termos zoológicos como homo sapiens
oculta vastas diferenças ou mesmo amargos antagonismos, como
os que existem entre brancos e pretos, homens e mulheres, ricos e pobres,
opressores e oprimidos; do mesmo modo, vagas expressões como
«sociedade» e «civilização» escondem
as diferenças entre sociedades livres, não hierárquicas,
sem Estado e sem classes, por um lado, e sociedades que são,
mesmo que em graus diferentes, hierárquicas, estatistas, autoritárias
ou dirigidas por interesses de classe, por outro. A zoologia, com efeito,
substitui aqui uma ecologia socialmente comprometida; o radicalismo
das «leis naturais» baseadas nas curvas populacionais entre
os animais substitui os conflitos econômicos e os interesses sociais
entre os homens.
Simplesmente, opor a «sociedade»
à «natureza», a «humanidade» à
«biosfera» e a «razão», a «tecnologia»
e a «ciência» a modos menos desenvolvidos, até
mesmo primitivos, de interação com o mundo natural, impede-nos
de examinar as diferenças e divisões altamente complexas
existentes dentro da sociedade, o que é absolutamente necessário
para a definição dos nossos problemas e das suas soluções.
O antigo Egito, por exemplo,
tinha uma atitude em relação à natureza significativamente
diferente da da antiga Babilônia. O Egito assumia uma atitude
de reverência para com uma multidão de divindades essencialmente
animistas, muitas das quais eram fisicamente meio humanas meio animais,
enquanto os babilônios criavam um panteão de divindades
políticas bastante humanas. Mas o Egito nem por isso era menos
hierárquico do que a Babilônia no modo como tratava o seu
povo e igualmente, se não mais, opressor em relação
à individualidade do homem. Alguns povos caçadores podem
ser tão destrutivos da vida selvagem, apesar das suas fortes
crenças animistas, como as culturas urbanas que se apoiam na
exaltação do racionalismo. Quando estas inúmeras
diferenças são simplesmente engolidas conjuntamente com
a grande variedade de formas sociais por uma palavra chamada «sociedade»,
estamos tão só a violentar o raciocínio, ou a própria
inteligência. A sociedade em si torna-se qualquer coisa de não-natural.
A razão, a ciência, a tecnologia tornam-se coisas destrutivas,
sem qualquer relação com os fatores sociais que condicionam
o seu uso. As ações humanas sobre o ambiente natural são
entendidas como ameaças — enquanto a nossa espécie
pouco ou nada pode fazer para melhorar o planeta ou a vida, em geral.
É claro, não somos
menos animais do que os outros mamíferos, mas somos algo mais
do que rebanhos nas planícies africanas. O modo como somos este
algo mais — nomeadamente pelos tipos de sociedade que formamos
e como nos dividimos uns contra os outros em hierarquias e classes —
é que afeta profundamente os nossos comportamentos e os efeitos
que podemos provocar no mundo natural.
Afinal, ao separar tão
radicalmente da natureza humanidade e sociedade, ou ao reduzilas ingenuamente
a meras entidades zoológicas, não se entende como é
que a natureza humana deriva de uma natureza inumana, e a evolução
social de uma evolução natural. A humanidade torna-se
estranha e alienada não apenas de si mesma, nesta nossa idade
da alienação, mas do próprio mundo natural, no
qual sempre teve as suas raízes enquanto força viva complexa
e pensante.
Assim, somos alimentados por
uma dieta de recriminações, por ambientalistas liberais
e misantrópicos, acerca de como a nossa espécie tem sido
responsável pelas rupturas ambientais. Não é preciso
irmos aos terreiros de gurus e místicos em São Francisco
para encontrar esta visão associal dos problemas ecológicos
e das suas causas; podemos fazê-lo facilmente em Nova Iorque.
Não me esquecerei facilmente de uma exposição «ambiental»
no Museu de História Natural, nos anos 70, em que o público
era colocado perante uma longa série de quadros apresentando
exemplos de poluição e ruptura ecológica. A exposição
culminava com uma assustadora chamada ao «Mais Perigoso Animal
sobre a Terra», que consistia, tão simplesmente, num espelho
que refletia o observador humano plantado em frente a ele. Recordo claramente
uma criança negra de pé em frente ao espelho, enquanto
um professor branco lhe tentava explicar a mensagem que esta arrogante
exposição procurava transmitir. Não estavam lá
expostos os conselhos de administração a planear a desflorestação
de uma colina, nem os governantes a atuar como seus cúmplices.
A exposição transmitia uma mensagem basicamente misantrópica:
as pessoas, enquanto tais, não uma sociedade rapace nem os seus
poderosos beneficiários, são os responsáveis pelas
alterações ambientais: os pobres não menos do que
os ricos, as pessoas de cor do que os privilegiados brancos, as mulheres
do que os homens, os oprimidos do que os opressores. Uma mítica
espécie humana surge no lugar das classes, o indivíduo
substitui as hierarquias, os gostos e valores pessoais (muitos dos quais
são o resultado dos predadores meios de comunicação
de massas) em vez das relações sociais e os despossuídos,
com as suas vidas estéreis e isoladas, estão no lugar
das gigantescas corporações, das burocracias que se auto-alimentam,
da violenta parafernália do Estado.
A relação da sociedade
com a natureza
Deixando de lado estas ultrajantes
exposições «ambientais», que pretendem colocar
os privilegiados e os desprivilegiados dentro da mesma moldura, parece
apropriado neste momento trazer à tona uma necessidade altamente
relevante: a necessidade de recolocar a sociedade dentro de um quadro
ecológico. Mais do que nunca, a ênfase deve ser posta no
fato de que praticamente todos os problemas ecológicos são
problemas sociais, e não só a resultante de ideologias
religiosas, espirituais ou políticas. Que estas ideologias possam
promover uma atitude anti-ecológica em pessoas de todos os estratos
não deixa de ser importante, mas mais do que tomar simplesmente
as ideologias pelo seu valor aparente é para nós crucial
questionar de onde é que elas surgiram e como se desenvolveram.
Com bastante freqüência
as necessidades econômicas podem forçar as pessoas a agir
contra os seus melhores impulsos, mesmo que sejam fortes valores naturais.
Os lenhadores que são contratados para cortar uma magnífica
floresta normalmente não têm nenhuma aversão às
árvores; eles têm pouca ou nenhuma escolha em relação
a cortar as árvores, assim como os trabalhadores dos matadouros
pouca ou nenhuma têm em relação ao abate dos animais.
Qualquer comunidade ou profissão terá a sua quota-parte
de sádicos ou de indivíduos com tendências destrutivas,
e bem podemos aqui incluir os ambientalistas misantropos que gostariam
de ver a humanidade exterminada, mas para a grande maioria das pessoas
este tipo de tarefas, bem assim como outras particularmente penosas,
como os mineiros, não são o resultado de uma livre escolha.
Elas são motivadas pela necessidade e, sobretudo, resultam de
contingências sociais sobre as quais as pessoas comuns nenhum
controle conseguem ter.
Para compreender os problemas
atuais, os ecológicos da mesma maneira que os econômicos
e os políticos, há que examinar as suas causas sociais
e procurar as suas soluções através de processos
também sociais. A ecologia profunda, espiritual e misantrópica,
desvia-nos gravemente destas questões quando nos chama a atenção
mais para os sintomas do que para as causas. Se a nossa obrigação
é ver as mudanças nas relações sociais de
modo a compreender as mudanças ecológicas mais significativas,
este tipo de ecologia, pelo contrário, afasta-se da sociedade
e dirige-se para o «espiritual», o «cultural»
ou para aquilo que vagamente designa como raízes «tradicionais».
Não foi a Bíblia que criou um antinaturalismo europeu,
ela apenas serviu para justificar um antinaturalismo já existente
desde os tempos pagãos, apesar da feição animista
das religiões pré-cristãs. A influência antinaturalista
cristã tornou-se especialmente marcada com a emergência
do capitalismo. A sociedade não tem apenas que ser trazida a
um quadro ecológico para perceber porque é que as pessoas
tendem a optar por sensibilidades competitivas — algumas fortemente
naturalistas, outras fortemente antinaturalistas — mas temos que
pesquisar mais fundo dentro da própria sociedade. Temos de procurar
o relacionamento da sociedade com a natureza, as razões por que
pode destruir o mundo natural e, em alternativa, as razões por
que conseguiu, e ainda pode, alimentar e fortemente contribuir para
a evolução natural.
Enquanto até agora podemos
falar de «sociedade» num sentido geral e abstrato —
e recordemos que cada sociedade é absolutamente única
e diferente das outras numa perspectiva histórica — é
necessário examinar o que melhor chamaríamos socialização,
e não apenas a sociedade. A sociedade é um dado conjunto
de relações que tendemos a considerar como definidas e
estáticas. Para muita gente, é como se a sociedade de
mercado, baseada na competição e na compra e venda, sempre
tivesse existido, embora tenhamos uma vaga idéia da existência
de sociedades pré-mercantis, baseadas na troca de dádivas
e na cooperação. A socialização, por outro
lado, é um processo, no mesmo sentido em que um indivíduo
vivo o é também. Historicamente, o processo de socialização
pode ser visto como uma espécie de infância social, que
implica uma dolorosa construção da maturidade social da
humanidade.
Mas quando consideramos a socialização
mais atentamente, o que acaba por nos impressionar é que a própria
sociedade, na sua forma mais básica, radica na natureza. Qualquer
evolução social, de fato, é virtualmente uma extensão
da evolução natural, no domínio específico
da humanidade. Como já dizia Cícero, orador e filósofo
romano, há dois mil anos atrás : «…pelo uso
das nossas mãos construímos, dentro do reino da Natureza,
uma segunda natureza para nós próprios.» Na verdade,
a frase de Cícero até é bastante incompleta: o
primitivo e presumidamente intocado «estado de natureza»,
ou «primeira natureza», é reconstruído numa
«segunda natureza» não só pelo uso das nossas
mãos; o pensamento, a linguagem e as complexas e importantes
mudanças biológicas desempenham igualmente um papel crucial
e muitas vezes decisivo no desenvolvimento dessa «segunda natureza».
Uso o termo reconstruir deliberadamente
para focar o fato de essa segunda natureza não ser um fenômeno
que se desenvolva à parte da «primeira natureza»
— e daí o especial valor que apresenta a expressão
de Cícero «dentro do reino da Natureza». Para sublinhar
que a segunda natureza, ou mais precisamente a sociedade, para usar
esta palavra no seu sentido mais geral, emerge de dentro da primitiva
«primeira natureza», está o fato de a vida social
ter sempre uma dimensão naturalista, por muito que a sociedade
seja oposta à natureza no nosso modo de pensar. A ecologia social
claramente expressa o fato de a sociedade não ser uma irrupção
súbita no mundo; a vida social não tem necessariamente
que enfrentar a natureza como um combatente numa guerra inevitável.
A emergência da sociedade é um dado natural que tem a sua
origem na biologia da socialização humana.
Este processo de socialização
humana de que emerge a sociedade — seja sob a forma de famílias,
bandos, tribos ou outros tipos mais complexos de inter-relacionamento
— tem a sua origem na relação parental, particularmente
na vinculação mãe-filho. A mãe biológica,
para sermos precisos, pode ser substituída por outros, incluindo
o pai, outros familiares ou, para o que aqui interessa, pelos membros
da comunidade. É quando os pais sociais e a «linhagem»
social, isto é, a comunidade humana que está à
volta do jovem, começam a participar num sistema de proteção
e cuidados, o que é habitualmente desempenhado pelos pais biológicos,
que a sociedade começa verdadeiramente a revelar-se.
A sociedade ultrapassa, então,
e muito o mero grupo reprodutivo; mas fá-lo a partir das relações
humanas institucionalizadas ou de uma comunidade animal relativamente
informe rumo a uma ordem social claramente estruturada. Mas no início
mesmo da sociedade, parece que os seres humanos são socializados
na sua «segunda natureza» através de laços
de sangue profundos, especificamente os laços maternos. Podemos
ver que ao longo do tempo as estruturas ou instituições
que marcaram o avanço da humanidade, da mera comunidade animal
a uma autêntica sociedade, começam por sofrer mudanças
de longo alcance, e estas mudanças tornam-se questões
de suprema importância para a ecologia social. Para o melhor e
para o pior, as sociedades desenvolvem-se à volta de grupos de
status, hierarquias, classes, formações estatais. Mas
a reprodução e os cuidados familiares continuam a ser
a permanente base biológica para qualquer forma de vida social,
assim como o fator original da socialização dos jovens
e da formação da sociedade. Como observou R. Briffault
na primeira metade deste século, «um fator conhecido que
estabelece uma profunda distinção entre a constituição
dos grupos humanos mais rudimentares e todos os outros grupos animais
[é a] associação das mães e das crias, que
é a única forma verdadeira de solidariedade social entre
os animais. Em toda a classe dos mamíferos há uma crescente
duração desta associação, que é a
conseqüência do prolongamento da dependência infantil»,
um prolongamento que Briffault relaciona com o aumento do período
de gestação fetal e com os avanços na inteligência
da espécie.
A dimensão biológica
que Briffault acrescenta àquilo que chamamos sociedade e socialização
não pode ser acentuada em demasia. É uma presença
decisiva, não apenas nas origens da sociedade ao longo dos tempos
da evolução animal mas também nas nossas vivências
quotidianas. O aparecimento de uma nova criança e a extensão
dos cuidados e atenções que ela recebe, por muitos anos,
recordam-nos que não se trata apenas de um ser humano que se
reproduziu, mas da própria sociedade. Em comparação
com os elementos juvenis de outras espécies, as crianças
desenvolvem-se lentamente e durante muito tempo. Ao viverem em estreita
associação com os pais, com os seus antecessores, com
o seu grupo de parentesco e com uma alargada comunidade de gente, elas
mantêm uma plasticidade mental que faz a criatividade individual
e a capacidade de formar grupos sociais. Ainda que outros animais se
possam aproximar das formas humanas de associação em vários
aspectos, eles não criam uma «segunda natureza» que
incorpore as tradições culturais, nem possuem uma linguagem
complexa, nem elaboram poderes conceptuais ou uma impressiva capacidade
de reestruturar o seu ambiente de acordo com as suas necessidades.
Os chimpanzés, por exemplo,
apenas permanecem crianças durante três anos, e a sua fase
juvenil é de sete anos; aos dez anos já são adultos
completos. As crianças humanas, em contraste, são consideradas
infantis durante seis anos e jovens durante catorze. Ou seja, um chimpanzé
cresce mental e fisicamente em mais ou menos metade do tempo que é
necessário a um humano, e a sua capacidade para aprender está
já estabelecida por comparação com o ser humano,
cujas capacidades mentais podem continuar a expandir-se durante décadas.
Do mesmo modo, as associações nos chimpanzés são
geralmente muito particulares e razoavelmente limitadas. As associações
humanas, pelo contrário, são basicamente estáveis,
fortemente institucionalizadas e caracterizadas por um grau de solidariedade
e de criatividade sem igual noutras espécies, tanto quanto sabemos.
Este prolongado grau de plasticidade
mental humana, de dependência e criatividade social produzem dois
resultados de importância decisiva. Em primeiro lugar, as associações
humanas primitivas terão alimentado uma forte predisposição
para a interdependência entre os membros do grupo, e não
o «rude individualismo» a que associamos a independência.
A enorme massa de dados antropológicos sugere que a participação,
a ajuda mútua, a solidariedade e a empatia seriam os valores
sociais que os primeiros humanos sublinhavam dentro das suas comunidades.
A idéia de que as pessoas são interdependentes para que
a sua vida seja melhor, senão mesmo para a sua própria
sobrevivência, é uma seqüência da prolongada
dependência dos jovens em relação aos adultos. A
independência, para não dizer já a competição,
teria parecido completamente estranha, senão mesmo bizarra, a
uma criatura mantida durante largos anos em condição de
dependência. A proteção dos outros seria vista como
um resultado perfeitamente normal para um ser altamente aculturado e
que era, por sua vez, claramente necessitado de cuidados prolongados.
A nossa versão moderna de individualismo, ou mais precisamente
de egoísmo, terá cortado rente a semente da primitiva
solidariedade e da ajuda mútua — características,
devo acrescentar, sem as quais um animal tão frágil fisicamente
como o ser humano dificilmente conseguiria sobreviver como adulto, quanto
mais como criança.
Em segundo lugar, a interdependência
humana teria assumido uma forma bastante estruturada. Não há
nenhuma evidência de que os seres humanos normalmente se relacionem
entre si através do tipo de vagos laços que encontramos
nos nossos primos chegados, os primatas. Que os laços sociais
humanos podem ser dissolvidos ou desinstitucionalizados em momentos
de mudança radical ou de ruptura cultural é demasiado
óbvio para ser discutido; mas em condições relativamente
estáveis, a sociedade humana nunca foi a «horda»
que os antropólogos do século passado supunham como base
rudimentar da vida social. Pelo contrário, as provas que possuímos
apontam precisamente para o fato de que todos os humanos, talvez até
incluindo os nossos longínquos antepassados hominídios,
viveram num certo tipo de grupos familiares estruturados e, posteriormente,
em bandos, tribos, aldeias. Resumindo, interligaram-se (como ainda fazem)
não apenas emocional e moralmente mas também estruturalmente,
em planeadas, claramente definíveis e razoavelmente permanentes
instituições.
Outros animais podem constituir
vagas comunidades, ou mesmo tomar disposições coletivas
para proteger os seus jovens dos predadores, mas dificilmente tais comunidades
podem ser consideradas estruturadas, a não ser num largo e efêmero
sentido. Os humanos, pelo contrário, criam comunidades altamente
formalizadas que se vão estruturando cada vez mais ao longo do
tempo. Com efeito, eles não formam somente comunidades; formam
esse novo fenômeno chamado sociedade.
Se não formos capazes
de distinguir as comunidades animais das sociedades humanas, arriscamo-nos
a ignorar o único fato que distingue a vida social humana das
comunidades animais — especialmente a capacidade da sociedade
de mudar, melhor ou pior, e os fatores que produzem essas mudanças.
Reduzindo uma sociedade complexa a uma simples comunidade, facilmente
podemos esquecer quanto as sociedades têm sido diferentes umas
das outras ao longo da História. Podemos igualmente falhar na
compreensão de como elas vão construindo simples diferenças
de status em hierarquias estabelecidas, ou hierarquias em classes econômicas.
Na verdade, corremos o risco de uma total incompreensão do verdadeiro
sentido de vocábulos como «hierarquia», enquanto
sistema altamente organizado de comando e obediência — e
nisso se distinguindo das diferenças de status, pessoais, individuais
e tantas vezes de curto alcance e que não envolvem atos compulsivos.
Temos tendência, de fato, a confundir as criações
estritamente institucionais da vontade humana, propósitos, interesses
conflituais e tradições, com a vida da comunidade nas
suas mais definidas formas, ainda que lidemos com características
inerentes e aparentemente inalteráveis da sociedade, mais do
que com estruturas fabricadas que possam ser modificadas, melhoradas,
pioradas ou simplesmente abandonadas. A manha de todas as elites dirigentes,
do princípio da História até aos tempos modernos,
tem sido a de conseguir fazer identificar os seus próprios sistemas
de dominação, socialmente construídos, com a própria
sociedade, disso resultando o fato de instituições feitas
pelo homem adquirirem assim uma intocabilidade divina ou biológica.
Uma dada sociedade e as suas
instituições, deste modo, tendem a tornar-se entidades
permanentes e imutáveis que adquirem uma misteriosa vida própria,
fora da natureza — nomeadamente, os produtos de uma aparentemente
definida natureza humana que é o resultado da programação
genética do início da vida social. Em alternativa, noutra
visão, uma dada sociedade e as suas instituições
podem dissolver-se na natureza, como outra mera forma de comunidade
animal, com os seus machos dominantes, guardiões, líderes
e rebanho. Quando temas desagradáveis como a guerra ou os conflitos
sociais se colocaram, foram atribuídos à atividade de
«genes» que presumivelmente desencadeiam a guerra, ou até
a «ganância».
Em qualquer dos casos, é
esta a noção de uma sociedade abstrata que existe para
lá da natureza, ou de uma comunidade natural que é indistinguível
da natureza, um dualismo que aparece e que friamente separa a sociedade
da natureza, ou um tosco reducionismo que surge e dissolve a sociedade
na natureza. Estas noções aparentemente contrastantes
mas na verdade intimamente relacionadas são tanto mais sedutoras
quanto são simplistas. Apesar de serem muitas vezes apresentadas
pelos seus apoiantes mais sofisticados de uma forma razoavelmente matizada,
tais noções são facilmente reduzidas a slogans
grandiloqüentes que cristalizam como dogmas fáceis e poderosos.
A ecologia social
A abordagem da sociedade e da
natureza que é feita pela ecologia social pode parecer mais exigente
intelectualmente, mas assim evita o simplismo do dualismo e a rudeza
do reducionismo. A ecologia social tenta mostrar de que modo a natureza
lentamente se introduz na sociedade, sem ignorar as diferenças
entre uma e outra, por um lado, nem a extensão pela qual se fundem,
por outro. A socialização diária dos jovens pela
família não radica menos na biologia do que os cuidados
diários aos velhos pela instituição médica
radicam nos duros fatos sociais. Do mesmo modo, nunca deixamos de ser
mamíferos que ainda mantêm os mesmos impulsos primários
naturais, mas institucionalizamos esses impulsos e a sua satisfação
numa ampla variedade de formas sociais. Assim, o social e o natural
continuamente se interpenetram nas atividades mais comuns do dia a dia,
sem perda da sua identidade, num processo partilhado de interação
e interatividade.
A ecologia social levanta questões
importantes quanto aos diferentes modos como a natureza e o social têm
interagido ao longo dos tempos e que problemas essa interação
tem originado. Como é que emergiu uma relação entre
a humanidade e a natureza de tipo divisionista, mesmo conflitual? Quais
foram as formas institucionais e as ideologias que o tornaram possível?
Considerando o crescimento das necessidades humanas e da tecnologia,
era tal conflito inevitável? E poderá ele ser ultrapassado
no futuro, numa sociedade ecologicamente empenhada?
De que modo é que uma
sociedade racional e ecologicamente orientada se adequa ao processo
da evolução natural? Indo ainda mais longe: existe alguma
razão para crer que a mente humana, ela própria um produto
da evolução, assim como a cultura, representa um cume
decisivo de desenvolvimento natural — nomeadamente no longo desenvolvimento
das formas de vida simples até à notável intelectualidade
e autoconsciência das mais complexas?
Ao colocar estas questões
altamente provocatórias não pretendo justificar nenhuma
pomposa arrogância em relação à vida não-humana.
Claramente, devemos trazer a particularidade da humanidade como espécie,
caracterizada por atributos sociais, imaginativos e construtivos preciosos,
à sincronicidade com a fecundidade, diversidade e criatividade
da natureza. Defendo que esta sincronicidade não deve ser conseguida
à custa da oposição entre natureza e cultura, vida
humana e não-humana, fecundidade natural e tecnologia ou uma
subjetividade natural oposta à mente humana. De fato, um importante
resultado que emerge da discussão do inter-relacionamento da
natureza com a sociedade é o fato do pensamento humano ter também
uma base natural. O nosso cérebro e o nosso sistema nervoso não
surgiram repentinamente, têm uma longa história natural.
Aquilo que mais prezamos como integral para a nossa humanidade —
a nossa extraordinária capacidade de pensar em níveis
conceptuais complexos — pode ser pesquisado desde a rede nervosa
dos invertebrados primitivos, os gânglios dos moluscos, a medula
dos peixes, o cérebro dos anfíbios, até ao córtex
dos primatas.
Mesmo aqui, no mais íntimo
dos nossos atributos humanos, não somos menos produto da evolução
natural do que da evolução social. Enquanto seres humanos
incorporamos eras de diferenciação e elaboração
orgânicas. Como as outras formas de vida complexas, não
somos apenas parte da evolução natural, somos igualmente
seus herdeiros e produto da fecundidade natural.
Ao tentar mostrar como a sociedade
lentamente vai crescendo a partir da natureza, no entanto, a ecologia
social também se vê obrigada a mostrar como a sociedade
também sofre diferenciação e elaboração
internas. Ao fazê-lo, a ecologia social deve examinar aquelas
costuras na evolução social em que as rupturas ocorrem,
empurrando lentamente a sociedade para uma oposição ao
mundo natural, e explicar a emergência desta oposição
desde as suas origens pré-históricas até aos nossos
dias. De fato, se a espécie humana é uma forma de vida
que pode conscientemente enriquecer o mundo natural, em vez de apenas
lhe causar prejuízo, é importante para a ecologia social
revelar os fatores que tornaram muitos seres humanos parasitas de um
mundo vivo, e não parceiros ativos da evolução
orgânica. Este projeto deve ser assumido não de um modo
ocasional mas como uma séria tentativa de dar coerência
à evolução natural e social, e como relevante para
os nossos tempos e para a construção de uma sociedade
ecológica.
Talvez que um dos contributos
mais importantes da ecologia social para as discussões atuais
no seio da ecologia seja o ponto de vista de que os problemas básicos
que colocam a sociedade contra a natureza estão situados dentro
do próprio desenvolvimento social, e não entre a sociedade
e a natureza. Que é o mesmo que dizer que as divisões
entre sociedade e natureza têm as suas raízes profundas
nas divisões internas no domínio do social, nomeadamente
nos conflitos entre humanos, que tantas vezes ignoramos pelo uso generalizado
da palavra «humanidade».
Esta visão fundamental
corta com as raízes de quase todo o pensamento ecológico
contemporâneo, e mesmo das teorizações sociais.
Uma das mais arreigadas noções que o pensamento ecológico
atual partilha com o liberalismo, o marxismo e o conservadorismo é
a da crença histórica de que o domínio da natureza
exige o domínio do homem pelo homem. Isto é igualmente
óbvio nas teorias sociais; quase todas as nossas ideologias sociais
contemporâneas colocaram a noção de dominação
humana no centro das suas teorizações. Tal continua a
ser uma das noções mais largamente aceites, dos pensadores
clássicos aos contemporâneos, de que a libertação
do «homem da dominação pela natureza» arrasta
a dominação do homem pelo homem, como nos primeiros modos
de produção e o uso de seres humanos como instrumentos
de sujeição do mundo natural. Por isso, no sentido de
domar o mundo natural, foi defendido durante muito tempo que era necessário
sujeitar os seres humanos enquanto tal, sob forma de escravos, servos
e trabalhadores.
Que esta noção
instrumental penetre a ideologia de quase todas as elites dirigentes
e que tenha fornecido quer aos movimentos liberais quer conservadores
argumentos para a sua conformação com o status quo, não
exige grande reflexão. O mito de uma natureza «mesquinha»
sempre foi usado para justificar a «prodigalidade» dos exploradores
no seu severo tratamento dos explorados — e forneceu a desculpa
para o oportunismo político liberal, tanto quanto o dos conservadores.
Trabalhar «por dentro do sistema» sempre implicou uma aceitação
da dominação como forma de «organização»
da vida social e, quanto muito, um modo de libertação
dos humanos da sua presumida dominação pela natureza.
O que talvez seja menos conhecido,
no entanto, é que também Marx justificava o surgimento
da sociedade de classes e do Estado como etapas para o domínio
da natureza e, presumivelmente, a libertação da humanidade.
Foi na força desta visão histórica que Marx formulou
a sua concepção materialista da história e baseou
a sua crença na necessidade da sociedade de classes como ponto
de apoio na marcha histórica para o comunismo.
Ironicamente, muito do que atualmente
passa por ecologia anti-humanística e mística envolve
exatamente o mesmo tipo de pensamentos, mas na sua forma invertida.
Assim como os seus oponentes instrumentais, estes ecologistas assumem
que a humanidade é dominada pela natureza, seja sob a forma de
«leis naturais» ou de uma inefável «sabedoria
da terra» que guiam o comportamento humano. Mas enquanto os seus
adversários defendem a necessidade de conseguir uma «rendição»
da natureza a uma humanidade activa-agressiva e «conquistadora»,
os ecologistas antihumanistas e místicos defendem a «rendição»
de uma humanidade passiva-receptiva a uma natureza «conquistadora».
Por muito que estes dois pontos de vista se diferenciem no seu paleio
e nas suas lamentações, a dominação permanece
a noção subjacente em ambos: um mundo natural concebido
como dirigente, seja para ser controlado ou obedecido.
A ecologia social confronta esta
armadilha dramaticamente, reexaminando o próprio conceito de
dominação, seja na natureza ou na sociedade ou sob a forma
de lei natural ou social. Aquilo a que habitualmente chamamos dominação
na natureza é uma projeção humana dos sistemas
altamente organizados de comando e obediência «social»
para altamente idiossincráticas, individuais e assimétricas
formas de comportamento, freqüentemente subtis, de coerção
em comunidades animais. Simplificando, os animais não «dominam»
outros animais do mesmo modo que a elite humana domina e explora um
grupo social oprimido. Nem «governam» através de
formas sistemáticas de violência, como o fazem as elites
sociais. Entre os macacos, por exemplo, existe pouca ou nenhuma coerção,
mas tão só esporádicas formas de comportamento
dominante. Os gibões e os orangotangos são notáveis
pelo seu comportamento pacífico para os membros da sua própria
espécie. Os gorilas são freqüentemente também
pacíficos, apesar de poderem assumir um «alto status»,
como o dos machos maduros e fisicamente mais fortes em relação
ao «baixo status» dos mais jovens e fracos. Os «machos
dominantes» entre os chimpanzés não ocupam posições
de «status» muito definidas naquilo que são os seus
grupos flutuantes; o «status» que adquirem acaba por dever-se
a uma variedade de causas.
Pode-se saltar de uma espécie
animal para outra, acabando por encontrar várias situações
de diferenciação e assimetria que levam a procurar «altos»
e «baixos status» individuais. Esta pesquisa vai-se tornando
sem sentido, no entanto, quando termos como «status» são
usados tão flexivelmente que permitem a inclusão de meras
diferenças de comportamento e de funções dentro
do grupo, em vez de cações coercivas.
O mesmo se pode dizer em relação
ao termo «hierarquia». Seja na sua origem seja no seu sentido
estrito, este termo é fortemente social, não zoológico.
Termo grego, originalmente usado para designar diferentes níveis
de divindades e, mais tarde, do próprio clero (caracteristicamente,
Hierapolis era uma antiga cidade frígia, na Ásia Menor,
que foi o centro do culto da deusa-mãe), a palavra foi-se expandindo
para recobrir tudo, desde as colmeias até ao efeito da erosão
de uma corrente de água sobre o leito de pedras, entendido como
um esgotamento e um «domínio» desse leito. As cuidadosas
mães elefantes foram consideradas «matriarcas» e
os atentos macacos machos, que mostram uma grande dose de coragem na
defesa da sua comunidade, adquirindo com isso alguns «privilégios»,
são geralmente designados como «patriarcas». A ausência
de um sistema organizado de governação nestas comunidades
animais — tão comum nas comunidades humanas hierarquizadas
e sujeito a mudanças institucionais radicais, incluindo revoluções
populares — é largamente ignorado.
Mais uma vez, as diferentes funções
que as presumíveis hierarquias animais desempenhariam, isto é,
as causas assimétricas que colocam um indivíduo num «estatuto
alfa» e os outros em estatutos inferiores, são entendidas
onde, simplesmente, as notamos. Poder-se-ia, pelo mesmo princípio,
colocar as maiores sequóias gigantes num «status»
superior em relação às mais pequenas, ou então
encará-las como a elite da floresta, hierarquicamente dominantes
em relação aos «submissos» carvalhos, os quais,
só para complicar, até são mais avançados
nas escalas evolutivas. A tendência para mecanicamente projetarmos
categorias sociais no mundo natural é tão irracional como
a tentativa de projetarmos conceitos biológicos na geologia.
Os minerais não se «reproduzem» como o fazem os seres
vivos. As estalactites e as estalagmites, nas cavernas, vão crescendo
ao longo dos tempos mas nenhum sentido do seu crescimento pode mesmo
remotamente corresponder ao crescimento dos seres vivos. Considerar
algumas semelhanças superficiais, por vezes obtidas por estranhas
maneiras, e agrupá-las em identidades partilhadas, é como
falar no «metabolismo» das rochas ou na «moralidade»
dos genes.
Isto põe a questão
das repetidas tentativas de encontrar traços éticos e
sociais no mundo natural, que será apenas potencialmente ético
tanto quanto pode constituir uma base para uma ética social objetiva.
Sim, certamente que a coerção existe na natureza, mas
nesta também existem a dor e o sofrimento. No entanto, a crueldade
não existe. As intenções e as vontades dos animais
são demasiado limitadas para produzir uma ética de bem
e de mal, de bondade e crueldade. A evidência de pensamento conceptual
e inferente é muito limitada entre os animais, exceto nos primatas,
nos cetáceos, nos elefantes e talvez nuns quantos outros mamíferos.
Mesmo entre os mais inteligentes animais os limites do seu pensamento
são imensos comparativamente às extraordinárias
capacidades dos seres humanos socializados. Podemos mesmo admitir que
somos ainda pouco humanos atualmente, em função do nosso
ainda desconhecido potencial para sermos mais criativos, atenciosos
e racionais. A nossa sociedade dominante serve mais para inibir do que
para realizar o nosso potencial humano. Ainda nos falta imaginação
para saber até onde as nossas melhores características
se podem expandir, com uma administração dos nossos assuntos
mais ética, ecológica e racional.
Em contraste, o mundo não-humano
conhecido parece ter atingido limites visíveis para a sua capacidade
de sobrevivência às mudanças ambientais. Se a mera
adaptação às alterações no ambiente
é entendida como o critério para o êxito evolutivo
(como muitos biólogos entendem), então os insetos devem
ser colocados num lugar mais elevado de desenvolvimento do que qualquer
mamífero. No entanto, eles não seriam capazes de produzir
uma avaliação intelectual de si próprios tão
imponente como a «abelha rainha» poderia ter-se, mesmo remotamente,
tivesse consciência do seu «real» estatuto —
devo acrescentar, um estatuto que apenas os humanos (que sofreram a
dominação social de estúpidos, cruéis e
ineptos reis e rainhas) seriam capazes de atribuir a um inseto inconsciente.
Nenhuma destas questões
pretendem metafisicamente opor a natureza à sociedade, ou a sociedade
à natureza. Pelo contrário, a sua intenção
é defender que o que une a sociedade à natureza numa contínua
e gradativa evolução é a notável extensão
pela qual os seres humanos, vivendo numa sociedade racional e ecologicamente
orientada, poderiam envolver a criatividade da natureza — distinguindo-se
isto de um critério de êxito evolutivo puramente adaptativo.
As grandes realizações do pensamento humano, a arte, a
ciência e tecnologia, não servem apenas para monumentalizar
a cultura, servem igualmente para monumentalizar a própria evolução
natural. Fornecem-nos provas heróicas de que a espécie
humana é uma forma de vida de sangue quente, excitantemente versátil
e agudamente inteligente — e não um inseto de sangue frio,
geneticamente programado e destituído de mente —, o que
demonstra os grandes poderes da criatividade natural.
As formas de vida que criam e
conscientemente alteram o seu meio ambiente, desejavelmente no sentido
de o tornar mais racional e ecológico, representam uma vasta
e indefinida extensão da natureza para um fascinante, e talvez
ilimitado, campo de evolução, no qual nenhuma espécie
de insetos alguma vez terá lugar — a evolução
de uma natureza totalmente autoconsciente. Se isto é humanismo,
ou mais precisamente humanismo ecológico, a corrente produção
de antihumanistas e de misantropos é bem-vinda para fazer parte
dele.
A natureza, por sua vez, não
é apenas um cenário que admiremos através duma
janela — uma vista congelada numa paisagem ou num panorama estáticos.
Tal paisagem de imagens da natureza poderá ser espiritualmente
estimulante, mas é ecologicamente enganadora. Parada no tempo
e no espaço, esta imagem faz com que nos seja mais fácil
esquecer que a natureza não é uma visão estática
do mundo natural mas uma longa e cumulativa história do desenvolvimento
natural. Esta história envolve a evolução inorgânica
tanto quanto a evolução orgânica. Onde quer que
estejamos, num campo, numa floresta ou no topo de uma montanha, os nossos
pés assentam em eras de desenvolvimento, sejam os estratos geológicos,
fósseis de vidas há muito extintas, a decomposição
das recentemente mortas ou a calma excitação de novas
vidas a emergir. A natureza não é uma «pessoa»,
uma «mãe carinhosa» nem, na crua linguagem materialista
do século passado, «matéria e movimento».
Nem sequer é um mero processo, que envolve ciclos repetitivos
como a mudança das estações ou as subidas e descidas
das atividades metabólicas. Melhor, a história natural
é uma evolução cumulativa em direção
a sempre mais variadas, diferenciadas e complexas formas e relações.
Este desenvolvimento evolucionário
de crescente variedade de seres é também um desenvolvimento
que contém possibilidades latentes excitantes. Através
da variedade, diferenciação e complexidade, a natureza,
no decurso do seu próprio desenvolvimento, abre novas direções
para ainda mais ousadas e alternativas linhas de evolução
natural. No grau em que os animais se tornam complexos, autoconscientes
e crescentemente inteligentes, começam a fazer escolhas elementares
que influenciam a sua própria evolução. São
cada vez menos passivos objetos de seleção natural e cada
vez mais ativos sujeitos do seu próprio desenvolvimento.
A lebre castanha que muda para
branca e que vê um terreno coberto onde se pode camuflar está
ativa na procura da sua sobrevivência, não apenas a adaptar-se
para sobreviver. Não se limita apenas de se ser selecionado pelo
ambiente: é selecionando o seu próprio ambiente e fazendo
escolhas que expressam, em alguma medida, subjetividade e arbítrio.
Quanto maior for a variedade
dos habitats que forem surgindo ao longo do processo evolucionário,
mais serão as formas de vida. Particularizando com o complexo
neurológico, é como desempenhar um papel ativo e arbitral
na sua própria preservação. Entendendo que a evolução
natural segue este caminho do desenvolvimento neurológico, origina
vidas que exercem uma ampla latitude de escolha e uma nascente forma
de liberdade no seu autodesenvolvimento.
Considerando este conceito de
natureza enquanto história cumulativa de níveis cada vez
mais diferenciados de organização de materiais (especialmente
formas de vida) e de crescente subjetividade, a ecologia social estabelece
a base para uma total compreensão do lugar da humanidade e da
sociedade na evolução natural. A história natural
não é uma história de vale-tudo e de salve-se quem
puder. É assinalada por tendências, direções
e, pelo menos no que aos humanos diz respeito, propósitos conscientes.
Os seres humanos e os mundos sociais que criaram, podem abrir um notável
horizonte ao desenvolvimento do mundo natural — um horizonte marcado
pela consciência, pela reflexão e por uma liberdade de
escolha e de capacidade criativa sem precedentes. Os fatores que têm
reduzido muitas formas de vida a papéis fundamentalmente adaptativos
na mudança ambiental estão a ser substituídos por
uma capacidade de adaptação consciente dos ambientes às
formas de vida existentes e emergentes.
A adaptação, na
verdade, aumenta os caminhos para a criatividade, e a aparentemente
cruel ação das leis naturais, os de uma maior liberdade.
Aquilo a que anteriores gerações chamavam «natureza
cega», para significar a ausência de qualquer sentido moral
na natureza, transformou-se numa «natureza livre», uma natureza
que lentamente vai encontrando uma voz e um sentido para aliviar as
inúteis atribulações da vida, em todas as espécies,
numa humanidade altamente consciente e numa sociedade ecológica.
O «princípio de Noé» de preservação
de todas as formas de vida existentes, como um objetivo em si mesmo,
um princípio avançado pelo autor antihumanista D. Ehrenfeld,
pouco significa sem o pressuposto, em última instância,
da existência de um «Noé» — ou seja,
de uma vida consciente chamada humanidade que possa salvar outras vidas
que a própria natureza extinguiria, nas glaciações,
secagem da terra, ou em colisões cósmicas com asteróides.
Os grandes ursos, os lobos, os pumas e tantos outros não estão
a salvo da extinção apenas porque se encontram ao cuidado
de uma putativa «Mãe Natureza». Se for verdadeira
a teoria de que os grandes répteis do Mesozóico se extinguiram
por causa das mudanças climáticas originadas pela colisão
de um asteróide com a Terra, a sobrevivência dos mamíferos
atuais pode bem não ser mais do que precária, face a uma
outra qualquer catástrofe natural desprovida de sentido, a menos
que exista uma consciência, ecologicamente orientada, que desenvolva
os meios tecnológicos que os salvem.
A questão, portanto, não
é a de que de qualquer modo a evolução social se
firma por oposição à evolução natural.
É como é que a evolução social pode situar-se
na evolução natural e porque é que tem sido arremessada
— escusadamente, como argumentei — contra a evolução
natural, em detrimento da vida como um todo. A capacidade de ser racional
e livre não basta para assegurar que essa capacidade se concretize.
Se a evolução social é vista como a potencialidade
para a expansão dos horizontes da evolução natural
até linhas criativas sem precedentes, e os seres humanos como
a potencialidade de a natureza se tornar autoconsciente e livre, então
a questão é porque é que estas potencialidades
têm sido desviadas e como é que podem vir a concretizar-se.
As rupturas entre a evolução
natural e a evolução social, a vida humana e a não
humana, uma natureza parcimoniosa e uma humanidade devoradora, são
sempre perversas e mal intencionadas quando são vistas como inevitabilidades.
Não o é menos a tentativa reducionista de dissolver o
social no natural, caindo a cultura dentro da natureza numa orgia de
irracionalidade, teísmo, misticismo, para equiparar o humano
a qualquer mera animalidade, ou para impor uma constrangedora «lei
natural» a uma obediente sociedade humana.
Por
muito que tenham tornado o homem um estranho na natureza, as mudanças
sociais fizeram muito mais o homem um estranho dentro do seu próprio
mundo social, com a dominação dos jovens pelos mais velhos,
das mulheres pelos homens, dos homens por outros homens. Hoje, como
durante tantos séculos, continua a existir opressão, existem
opressores que literalmente possuem a sociedade e outros que são
por eles possuídos. Até que a sociedade possa ser reivindicada
por uma humanidade unida, que queira usar a sua sabedoria coletiva,
as suas realizações culturais, as inovações
tecnológicas, o conhecimento científico e a sua inata
criatividade em seu próprio benefício e para o do mundo
natural, todos os problemas ecológicos continuarão a ter
as suas raízes nos problemas sociais.