Murray
Bookchin
Porque
Ecologia Social?
É
hoje impossível considerar pouco importantes, marginais ou "burgueses"
os problemas ecológicos. O aumento da temperatura do planeta
em virtude do teor crescente de anidrido carbônico na atmosfera,
a descoberta de enormes buracos na camada de ozônio - atribuíveis
ao uso exagerado de clorofluorcarbonetos - que permitem a passagem das
radiações ultravioletas, a poluição maciça
dos oceanos, do ar, da água potável e dos alimentos, a
extensa deflorestação causada pelas chuvas ácidas
e pelo abate incontrolado, a disseminação de material
radioativo ao longo de toda a cadeia alimentar... tudo isto conferiu
à ecologia uma importância que não tinha no passado.
A sociedade atual está a danificar o planeta a níveis
que superam a sua capacidade de auto-depuração. Avizinhamo-nos
do momento em que a Terra não estará em formas de manter
a espécie humana nem as complexas formas de vida não humana,
que se desenvolveram ao longo de milhões de anos de evolução
orgânica.
Face
a este cenário catastrófico há o risco, a julgar
pelas tendências em curso na América do Norte e nalguns
países da Europa ocidental, de se tentar curar os sintomas em
vez das causas e de pessoas ecologicamente empenhadas procurarem soluções
cosméticas em vez de respostas duradouras. O crescimento dos
movimentos "verdes" um pouco por todo o mundo - inclusive
no Terceiro Mundo- testemunha a existência de novo impulso para
combater corretamente o desastre ecológico. Mas torna-se cada
vez mais evidente que se necessita de bastante mais que de um "impulso".
Por importante que seja deter a construção de centrais
nucleares, de auto-estradas, de grandes aglomerações urbanas
ou reduzir a utilização de produtos químicos na
agricultura e na indústria alimentar, é necessário
darmo-nos conta que as forças que conduzem a sociedade para a
destruição planetária têm as suas raízes
na economia mercantil do "cresce ou morres", num modo de produção
que tem de expandir-se enquanto sistema concorrencial. O que está
em causa não é a simples questão de "moralidade",
de "psicologia" ou de "cobiça". Neste mundo
competitivo em que cada um se acha reduzido a ser comprador ou vendedor
e em que cada empresa se deve expandir para sobreviver, o crescimento
limitado é inevitável. Adquiriu a inexorabilidade duma
lei física, funcionando independentemente de intenções
individuais, de propensões psicológicas ou de considerações
éticas.
Hecatombes
de Quarenta Milhões de Bizontes
Atribuir
toda a culpa dos nossos problemas ecológicos à tecnologia
ou à "mentalidade tecnológica" e ao crescimento
demográfico (para citar dois dos argumentos que mais freqüentemente
emergem na mídia) é como castigar a porta que nos trancou
ou o cimento em que caímos e nos machucamos. A tecnologia - mesmo
a má como os reatores nucleares- amplifica problemas existentes,
não os cria. O crescimento populacional é um problema
relativo, se efetivamente o é. Não é possível
dizer com segurança quantas pessoas poderiam viver decentemente
no planeta sem produzir transtornos ecológicos. Os Estados Unidos,
na última metade do século XIX, chacinaram quarenta milhões
de bisontes, exterminaram espécies como o pombo correio, cujos
bandos obscureciam o céu, destruiram vastas áreas de floresta
original e entregaram à erosão ótima terra cultivável,
de superfície comparável à de um grande país
europeu... e todo este dano foi levado a cabo com uma população
de menos de cem milhões de habitantes e uma tecnologia atrasada,
pelos padrões atuais. Em suma, Havia outros fatores em jogo além
da tecnologia e da pressão demográfica quando este drama
se desenrolou. A praga que afligiu o continente americano era mais devastadora
que uma praga de gafanhotos. Era uma ordem social que se deve chamar
sem cerimônias pelo nome que tinha e tem: capitalismo, na sua
versão privada a Ocidente e na sua forma burocrática a
Oriente. Eufemismos como "sociedade tecnológica" ou
"sociedade industrial", termos muito difundidos na literatura
ecológica contemporânea, tendem a mascarar com expressões
metafóricas a brutal realidade duma economia baseada na competição
e não nas necessidades dos seres humanos e da vida não
humana. Assim a tecnologia e a indústria são representadas
como os protagonistas perversos deste drama, em vez do mercado e da
ilimitada acumulação de capital, sistema de "crescimento"
que por fim devorará toda a biosfera se para tanto se lhe consentir
sobrevivência suficiente.
Sem
Hierarquia e Sem Classes
Aos
enormes problemas criados por esta ordem social devem juntar-se os criados
por uma mentalidade que começou a desenvolver-se muito antes
do nascimento do capitalismo e que este absorveu completamente. Refiro-me
à mentalidade estruturada em torno de hierarquia e do domínio,
em que o domínio do homem sobre o homem originou o conceito do
domínio sobre a natureza como destino e necessidade da humanidade.
É reconfortante que se haja insinuado no pensamento ecológico
a idéia de que esta concepção do destino humano
é perniciosa. Contudo, não se compreendeu claramente como
surgiu, persiste e como pode ser eliminada esta concepção.
E se se quer achar remédio para o cataclismo ecológico,
deve procurar-se a origem da hierarquia e do domínio. O fato
da hierarquia sob todas as formas - domínio do jovem pelo velho,
da mulher pelo homem, do homem pelo homem na forma de subordinação
de classe, de casta, de etnia ou de qualquer outra estratificação
da sociedade - não haver sido identificada como tendo âmbito
mais amplo que o mero domínio de classe, tem sido uma das carências
cruciais do pensamento radical. Nenhuma libertação será
completa, nenhuma tentativa de criar harmonia entre os seres humanos
e entre a humanidade e a natureza poderá ter êxito se não
forem erradicadas todas as hierarquias e não apenas a de classe,
todas as formas de domínio e não apenas a exploração
econômica.
Estas
idéias constituem o núcleo essencial da minha concepção
de ecologia social e do meu livro A Ecologia da Liberdade. Sublinho
cuidadosamente o uso que faço do termo "social", quando
me ocupo de questões ecológicas, para introduzir outro
conceito fundamental: nenhum dos principais problemas ecológicos
que hoje defrontamos se pode resolver sem profunda mutação
social. Esta é uma idéia cujas implicações
não foram ainda plenamente assimiladas pelo movimento ecológico.
Levada ás suas conclusões lógicas significa que
se não pode transformar a sociedade presente aos poucos, com
pequenas alterações. Quando muito estas pequenas mudanças
são entraves que apenas reduzem a velocidade louca a que se está
a destruir a biosfera. Devemos certamente ganhar o máximo tempo
possível nesta corrida contra o biocídio e fazer todo
o possível para a deter. Não obstante o biocídio
prosseguirá, a menos que as pessoas se convençam da necessidade
duma mudança radical e da de se organizarem para esse efeito.
Deve aceitar-se a substituição da sociedade capitalista
atual pelo que denomino "sociedade ecológica", isto
é, por uma sociedade que implique as mutações sociais
indispensáveis para eliminar os abusos ecológicos.
É
imprescindível refletir e debater profundamente sobre a natureza
de tal "sociedade ecológica". Algumas conclusões
são quase óbvias. Uma sociedade ecológica deve
ser não-hierárquica e sem classes, deve eliminar mesmo
o conceito de domínio da natureza. A este propósito têm
de se retomar os fundamentos do eco-anarquismo de Kropotkin e dos grandes
ideais iluministas da razão, liberdade e força emancipadora
da instrução, defendidos por Malatesta e Berneri. Melhor,
os ideais humanistas que guiaram os pensadores anarquistas do passado
devem ser recuperados na globalidade e transformados num humanismo ecológico
que incarne nova racionalidade, nova ciência e nova tecnologia.
O
motivo pelo qual sublinhei os ideais iluministas libertários
não é redutível aos meus gostos e predileções
ideológicas. Trata-se realmente de ideais que não podem
dispensar atenta consideração de qualquer indivíduo
empenhado ecologicamente. Oferecem-se, hoje em todo o mundo, alternativas
inquietantes ao movimento ecológico. Por um lado vai-se difundindo,
sobretudo na América do Norte, mas também na Europa, uma
espécie de doença espiritual, uma atitude contra iluminista
que, em nome do "regresso à natureza", evoca racionalismos
atávicos, misticismos e religiosidade de índole "pagã".
Culto de "divindades femininas", "tradições
paleolíticas" (ou "neolíticas", consoante
os gostos), rituais "ecológicos" (espécie de
ecologia vodu da administração Reagan) vão tomando
forma deste e do outro lado do Atlântico em nome duma nova "espiritualidade".
Este revivalismo do primitivismo não é fenômeno
inócuo: frequentemente está imbuído de um neo-malthusianismo
pérfido que se propõe, no essencial, deixar morrer de
fome os pobres, vítimas principais da carestia do Terceiro Mundo,
com a finalidade de "reduzir a população". A
Natureza, diz-se, deve ser deixada livre para "seguir o seu curso".
A fome e a carestia não são causadas, diz-se, pelos negócios
agrários, pelo saque levado a cabo pelas grandes empresas, pelas
rivalidades imperialistas, pelas guerras civis nacionalistas, mas têm
a sua origem na superpopulação. Deste modo o problema
econômico é completamente esvaziado de conteúdo
social e reduzido à interação mítica das
forças naturais, freqüentemente com forte carga racista
de pendor fascistizante. Por outro lado está em construção
o mito tecnocrático segundo o qual a ciência e a engenharia
resolveriam todos os males ecológicos. Como nas utopias de H.
G. Wells procura-se fazer acreditar na necessidade duma nova elite para
planificar a solução da crise ecológica. Fantasias
deste tipo estão implícitas na concepção
da terra como "astronave" (segundo a grotesca metáfora
de Buckiminister Fuller), que pode ser manipulada pela engenharia genética,
nuclear eletrônica e política (para dar um nome altissonante
à burocracia). Fala-se da necessidade de maior centralização
do Estado, desembocando na formação de "mega-Estados",
em paralelo arrepiante com as empresas multinacionais. E como a mitologia
se tornou popular entre os eco-místicos, promotores dum primitivismo
em versão ecológica, o sistema tecnoburocrático
logrou grande popularidade entre os "eco-tecnocratas", criadores
dum futurismo em versão ecológica. Nos dois casos o ideal
libertário do iluminismo - valorização da liberdade,
da instrução, da autonomia individual - são negados
pela pretensão de nos impedir a quatro patas para um "passado"
obscuro, mistificado e sinistro, ou de nos catapultar como míssil
para um "futuro" radioso, igualmente mistificante e sinistro.
O
Que É a Natureza
A
ecologia social, tal como a concebo, não é mensagem primitivista
tecnocrática. Tenta definir o lugar da humanidade "na"
natureza - posição singular, extraordinária - sem
cair num mundo de cavernícolas anti-tecnológicos, nem
levantar voo do planeta com fantasiosas astronaves e estações
orbitais de fição científica. A humanidade faz
parte da natureza, embora difira profundamente da vida não humana
pela sua capacidade de pensar conceitualmente e de comunicar simbólicamente.
A natureza, por sua vez, não é simplesmente cena panorâmica
a olhar passivamente através da janela, é a evolução
na sua totalidade, tal como o indivíduo é a sua própria
biografia e não a simples edição de dados numéricos
que exprimem o seu peso, altura, talvez "inteligência"
e assim por diante. Os seres humanos não são unicamente
uma entre muitas formas de vida, forma especializada para ocupar um
dos muitos nichos ecológicos no mundo natural. São seres
que, pelo menos potencialmente, podem tornar auto-consciente e, por
conseguinte, auto-dirigida a evolução biótica.
Com isto não quero dizer que a humanidade chegue a ter conhecimento
suficiente da complexidade do mundo natural para poder ser o tomoneiro
da sua evolução, dirigindo-a à sua vontade. As
minhas reflexões sobre a espontaneidade sugeram prudência
nas intervenções sobre o mundo natural, (sustentam que
se requer) grande cautela nas modificações a empreender.
Mas, como disse em "Pensar Ecologicamente", o que verdadeiramente
nos faz únicos é podermos intervir na natureza com um
grau de auto-consciência e flexibilidade desconhecido nas outras
espécies. Que a intervenção seja criadora ou destrutiva
é problema que devemos enfrentar em toda a reflexão sobre
a nossa interação com a natureza. Se as potencialidades
humanas de auto-direção consciente da natureza são
enormes devemos contudo recordar que somos hoje ainda menos que humanos.
A
nossa espécie é uma espécie dividida - dividida
antagonisticamente por idade, carácter, classe, rendimento, etnia,
etc. - e não uma espécie unida. Falar de "humanidade"
em termos zoológicos, como fazem atualmente tantos ecologistas
- inclusivamente tratar as pessoas como espécie e não
como seres sociais que vivem em complexas criações institucionais
- é ingenuamente absurdo. Uma humanidade iluminada, reunida para
se dar conta das suas plenas potencialidades numa sociedade ecologicamente
harmoniosa, é apenas uma esperança e não apenas
uma realidade, um "dever ser" e não um "ser".
Enquanto não tivermos criado uma sociedade ecológica,
a capacidade de nos matarmos uns aos outros e de devastar o planeta
fará de nós - como efetivamente faz - uma espécie
menos evoluída do que as outras. Não conseguir ver que
atingir a humanidade plena é problema social que depende de mutações
institucionais e culturais fundamentais é reduzir a ecologia
radical à zoologia e tornar quimérica qualquer tentativa
de realizar uma sociedade ecológica.
Vínculos
Comunitários
Como
é possível conseguir as transformações sociais
de grande alcance que preconizo? Não creio que possam vir do
aparelho de Estado, quer dizer, num sistema parlamentar de substituição
dum partido por outro (por altamente inspirado que este último
possa parecer durante o seu período heróico de formação).
A minha experiência com o movimento verde alemão demonstrou-me
(partindo do princípio que teria necessidade dessa demonstração)
que o parlamentarismo é moralmente nocivo no melhor dos casos
e totalmente corrupto na pior das hipóteses. A representação
dos verdes no Bundestag confirmou, nestes últimos tempos, os
meus piores temores: a sua maioria "realista" é favorável
à participação da Alemanha Ocidental na NATO e
apoia uma forma de "eco-capitalismo" (contradição
nos termos) incompatível com qualquer abordagem ecológica
radical.
Além
disso o parlamentarismo mina invariavelmente a participação
popular na política, no significado que há muitos séculos
lhe é atribuído. Para os antigos atenienses política
significava a gestão da polis, isto é, da cidade, diretamente
pelos cidadãos reunidos em assembléia e não através
de burocratas ou de representantes eleitos. É verdade que somente
os homens eram cidadãos e que, além das mulheres, estrangeiros
e escravos eram igualmente excluídos. É ainda verdade
que os cidadãos ricos dispunham de recursos materiais e gozavam
de privilégios recusados aos cidadãos pobres. Mas é
também verdade que a antiga cidade mediterrânea não
havia ainda alcançado, há dois mil e tantos anos, o seu
pleno desenvolvimento, a "sua verdade" como diria Hegel. A
liberdade do cidadão participar na vida política não
dependia da tecnologia mas do trabalho: dos escravos, das mulheres e
do seu próprio. Aristóteles não via qualquer dificuldade
em admitir que quando os teares tecessem sozinhos os gregos não
necessitariam de escravos, nem - acrescento eu - de explorar o trabalho
alheio para dispôr de tempo livre para si mesmos. Hoje as máquinas
fazem o que Aristóteles dizia e muito mais. Podemos finalmente
fruir o tempo livre necessário para nos desenvolvermos e participar
amplamente na vida pública sem precisarmos de pôr em perigo
o mundo natural nem explorar o trabalho alheio. A ecologia radical não
pode ser indiferente ás relações sociais e econômicas.
O delicado equilíbrio entre o uso da tecnologia com fins libertadores
e o seu uso com fins destrutivos para o planeta é matéria
de apreciação social, mas tal apreciação
é grandemente ofuscada quando ecologias sui generis denunciam
a tecnologia como mal irrecuperável ou a exaltam como virtude
indiscutível. Curiosamente, místicos e tecnocratas têm
importante característica em comum: nem uns nem outros examinam
a fundo os problemas nem seguem a lógica para além das
premissas mais elementares e simplistas.
Uma
nova política deveria, quanto a mim, implicar a criação
duma esfera pública "de base" extremamente participativa,
a nível da cidade, do campo, das aldeias e bairros. Decerto o
capitalismo provocou destruição tanto dos vínculos
comunitários como do mundo natural. Em ambos os casos encontramo-nos
face a simplificação das relações humanas
e não humanas, à sua redução a formas interativas
e comunitárias elementares. Mas onde existam ainda laços
comunitários e onde - mesmo nas grandes cidades - possam nascer
interesses comuns, esses devem ser cultivados e desenvolvidos. Estudei
este tipo de política comunal (repito: entendo política
no sentido helenico, não no seu significado atual que denomino
"estatalidade") no meu livro "O Progresso da Urbanização
e o Declínio da Cidadania". Por difícil que pareça,
na Europa (e em menor grau, creio, nos Estados Unidos) acredito na possibilidade
duma confederação de municípios livres como contra-poder
de base à centralização crescente do poder por
parte do Estado-nação. Quero fazer notar que, neste campo,
a política ecológica é em muitos casos não
apenas possível mas também coerente com a ecologia concebida
como estudo da comunidade, quer humana quer não humana. Uma sociedade
ecológica pressupõe formas participativas de base, comunitárias,
que tal política se propõe realizar no futuro. A ecologia
não é nada se se não ocupar do modo como interagem
as formas de vida para construir e se desenvolverem como comunidades
(...).