Zappa Ou a Função Social da Música

 

"Que farás

Se te deixarmos ir para casa

E o plástico estiver todo derretido

E o Cromo também...

Quem são os polícias do cérebro?

Que farás

Quando o rótulo se desprender

E o plástico estiver todo derretido

E demasiado mole o cromo...

Quem são os polícias do cérebro?

Que farás

Se as pessoas que conhecias

Forem o plástico derretido

E o cromo também?

Quem são os polícias do cérebro?

Frank Zappa - "Freak Out", 1966

Se há algum músico e compositor que poderemos chamar de incómodo, pela sua música e fundamentalmente pelas letras das suas canções, esse é, sem dúvida, Frank Zappa. Fundador do grupo norte-americano Mothers of Invention, desde 1964 que Zappa tem massacrado o sistema burguês capitalista, liberal norte-americano, aquilo que é comumente conhecido por american way of life, através de dois tópicos que sistematicamente encontramos nas suas letras: a crítica social e o sexo. É o aspecto da crítica social que nos interessa aqui sublinhar, embora o outro não seja se somenos importância.

Basicamente até 1968 as letras das canções eram simples, claras e evidentes (como diria Descartes) que qualquer pessoa as poderia entender. No entanto, a partir dessa altura modifica-se a música e também a mensagem dos textos. Zappa quer que o ouvinte de capacidades medianas consiga apanhar alguma coisa, pois ele acredita numa função utilitária e interveniente da sua música.

É o caso por exemplo do seguinte texto, extraído da obra Joe's Garage act.II de 1979: "Afinal foi descoberto/ que Deus/ Não queria que nós fossemos/ Todos iguais/ Estas foram/ Más notícias/ Para os governos do Mundo/ Que pareciam em oposição/ À doutrina da/ Servidão separada e Controlada/ A Humanidade deveria ser feita mais Uniformemente/ Se/ o futuro/ Funcionasse/ Vários caminhos foram procurados/ Para que ficássemos todos ao mesmo nível/ Mas, infelizmente/ A Igualdade não foi conseguida/ Foi por esta altura/ Que alguém/ Veio com a ideia da/ Criminalização Total.

Baseada no princípio de que/ Se todos nós éramos delinquentes/ Poderíamos finalmente ficar iguais/ Até um certo grau/ Aos olhos da Lei/ Os nossos legisladores calcularam sagazmente/ Que a maioria das pessoas era/ Demasiado preguiçosa para praticar/ Um verdadeiro crime/ Por isso, novas leis foram feitas/ Para tornar possível a qualquer um/ Violá-las a qualquer hora do dia ou da noite/ E/ Uma vez desrespeitadas todas as leis/ Nós seríamos todos do mesmo grande e feliz clube/ Ali mesmo, junto ao Presidente/ Os mais glorificados industriais/ E as grandes cabeças do clero/ De todas as nossas religiões preferidas/

Criminalização Total/ Foi o maior ideal do seu tempo/ E foi grandemente popular/ Excepto para aquelas pessoas/ Que não quiseram ser delinquentes ou criminosas,/ Por isso, naturalmente tinham de ser/ Todos levados a isso por truques.../ O que é uma das razões pela qual/ A Música/ foi finalmente declarada/ Ilegal.

Os Mothers of Invention sempre foram um grupo crítico consciente da realidade. Opõem-se ao sistema instituído na medida em que as suas canções não tentam convencer o auditório da inexistência dos problemas.

Zappa considera que o seu trabalho contribui para um melhor esclarecimento político das pessoas. Pensa que o ideal será poder contar com um público consciente, social e politicamente, isto é, um público comprometido que sinta o que há a fazer. É aliás exactamente isso que Zappa diz numa entrevista dada em 1968 em Hollywood: "Queremos contribuir para um maior esclarecimento político das pessoas. A maior parte dos jovens norte-americanos não pensa em termos de política. Advém daí que dispõe de muito tempo livre e tenta passá-lo da melhor forma possível. Por isso, creio que seria um grande passo obrigá-los a raciocinar."

Ainda nessa mesma entrevista à pergunta de como deveria ser a sociedade futura, Zappa confessa que a nova devia ser uma sociedade sem governo, embora diga não vislumbrar que nos próximos quinhentos anos a possibilidade dessa experiência. O que é necessário no imediato é usufruir desta sociedade, apesar de os governantes ditos democráticos, terem perdido todo o contacto com o povo que representam. No entanto, Zappa só se considera anarquista em casa, nos seus pensamentos, nas suas divagações. Oiçamo-lo então:

- "Como deveria ser, na sua opinião, a nova sociedade?

- Gostaria muito da sociedade sem governo. Creio que isso seria o ideal. Mas nos próximos quinhentos anos não vejo possibilidades de amadurecermos para tentarmos essa experiência.

- Que haverá então a fazer?

- É urgente usufruir o máximo desta sociedade, baseada num governo democrático, interessada realmente na vontade popular. Na minha opinião, falar-se hoje em dia em democracia é arriscar uma resposta irónica. Porque as pessoas que afirmam governar democraticamente, perderam todo o sentido do contacto com o povo que representam. Por outro lado, existem muitas pessoas que não compõem efectivamente o governo e que apostam na defesa de determinadas coisas vistas sob um prisma pessoal e que significam proveito próprio. Estes intrusos deviam ser afastados do governo, já que o que eles pretendem nada significa para o povo. Porém, a influência dessas pessoas é notória e pesa muito nas decisões governamentais. É uma situação lamentável e que não tem razão de ser,.

- Você é anarquista?

- Só em casa, nos meus pensamentos, nas minhas divagações. Mas também sou prático e sei que há coisas que não funcionam isoladas. Uma anarquia só tem fundamento no seio de um povo integralmente civilizado e culto. Mas ainda estamos muito longe desse ponto. O ponto não tem cultura, nem civilização e há muita gente a morrer de fome. Se não for a fome de comida, será pelo menos a fome de ajuda emocional, que não recebem efectivamente. É necessário sublinhar e enfrentar esta sociedade desagradável e injusta e isso não se faz na simplicidade da frase: "Aqui tens a liberdade. Podes fazer aquilo que entenderes, já que não há governo nem lei." Esta atitude é impossível, pois lançaria a confusão e ninguém saberia o que fazer. Seria o caos, a destruição, a antropofagia simultânea, semelhante à luta entre animais. É preciso aconselhar, preparar toda a gente. E aqui põe-se a questão: Será lícito, em tais circunstancias, "entreter" as pessoas?"

É claro que defendendo esta posição, Frank Zappa e os Mothers of Invention não tiveram nunca grande receptividade dos média nomeadamente da rádio e da televisão. De um modo geral, a rádio nega-se a transmitir os seus discos e quando o faz é sob a forma de fragmentos que não perturbam os ouvintes. Com a televisão passa-se o mesmo. Os Mothers of Invention não fazem um espectáculo, mas uma simples intervenção de cerca de cinco minutos. Diz Zappa que é "uma espécie de oportunidade dada aos espectadores de nos contemplarem como se estivéssemos no Jardim Zoológico".

A razão para isto encontra-se - Zappa - na estrutura em que assenta a cadeia de emissores de rádio e de TV nos Estados Unidos: os meios de difusão pertencem aos grandes potentados económicos, que naturalmente não gostam de ideias diferentes das suas.

E é este senhor que dá pelo nome completo de Frank Vincent Zappa que em poucas palavras quisemos homenagear e que no panorama musical internacional surge como um dos músicos - compositores mais importantes da segunda metade do nosso século. Que este artigo sirva para despertar o interesse naqueles que não o conhecem será objectivo mais do que meritório tendo em conta os subprodutos de consumo ditos musicais, que por aí não deixam de abundar (1).

(1) No panorama editorial português há duas obras a destacar pela sua importância: de César Figueiredo há duas obras a destacar pela sua importância: de César Figueiredo Frank Zappa - A Grande Mãe, col. Rock on 12, Fora do Texto/Centelha, Coimbra, 1988, e de António Filipe Marques, FranK Zappa - Antologia Poética, Assírio e Alvim, Lisboa, 1985.

Para além disso, encontram-se vários artigos em revistas da música e em jornais tais como, Mundo da Canção, Musicalíssimo, Sete, etc, mas dos quais não vale a pena falar, pela sua importância musicológica quase nula.

1990