Notas
Para Uma Definição de Cinema Revolucionário
Por
Alfredo Rubinato
Desde
o advento do cinema soviético, com a vitória da revolução
socialista, as possibilidades de um cinema de expressão revolucionária
começaram a ser seriamente discutidas. Através, sobretudo,
dos cineastas Sergei Eisenstein e Dziga Vertov, tornou-se palpável
a concepção de um cinema não apenas revolucionário
em termos de conteúdo, mas revolucionário também
em seu aspecto formal, uma arte revolucionária na amplitude
máxima de seus meios de formulação. A mesma atitude
pode ser encontrada nas vanguardas literárias soviéticas,
em poetas como Maiakóvsky, Klebhnikov ou Krutchonik, bem como
nas artes plásticas, com Malevitch, Lissitzky, Rodchenko, Tatlin
e outros, e seria a característica determinante da cultura
soviética nos anos 20, antes do advento do stalinismo e da
ditadura do realismo socialista nas artes com Zdanov.
Eisenstein preconizou uma montagem dialética, que se inspirou
em fontes tão diversas como o marxismo, o teatro Nô japonês
e os ideogramas. A concepção dialética de montagem
advoga o princípio da justaposição de dois planos
que criam um novo significado, que não é expresso em
termos visuais, mas sim em termos conceituais na mente do espectador.
Pode-se citar, como exemplo notável desta concepção,
a memorável seqüência de A Greve (Stachka —
1924), onde são justapostos planos consecutivos que mostram
cenas de um matadouro de bovinos e a repressão da polícia
tzarista aos grevistas. O significado almejado não é
exibido plasticamente na tela, mas de obtido de modo abstrato no entendimento.
É importante verificar que não há, pois, um objetivo
meramente didático, pois o significado não é
apresentado como um realidade acabada, pronta para ser assimilada,
mas sim como uma proposta que deve ser discutida pelo espectador.
Trata-se de um cinema que desencadeia no público a formação
da consciência revolucionária, num processo que exige
uma participação ativa daquele que o contempla, que
é chamado a refletir sobre o conteúdo expresso na tela.
Forma-se portanto a seguinte equação: conteúdo
revolucionário + forma revolucionária = ARTE REVOLUCIONÁRIA.
Para Vertov, o caráter revolucionário do cinema se resolve
na montagem. O cinema de Vertov proclama o primado da câmara
sobre o olho humano. A câmara é o instrumento que organiza
a realidade numa perspectiva coerente. É um cinema que recusa
toda forma de encenação, se afirmando como uma interpretação
revolucionária da realidade. Nesse sentido, considera a ficcionalização
da realidade como uma forma de ilusão, de mistificação.
O cinema se transforma num instrumento dialético não
apenas de interpretação, mas de transformação
revolucionária da humanidade. É o olho mecânico
— KINOGLAZ — que organiza a realidade, que força
o espectador, antes passivo, a converter-se em sujeito histórico
de sua própria libertação.
O cinema revolucionário é aquele que, portanto, responde
de maneira transformadora e libertária às questões
do contexto histórico que enfrenta, não apenas na perspectiva
das idéias, mas também da estética, da forma.
É, em sua essência, o mesmo trabalho que um Brecht, um
Heiner Müller, irão desenvolver no teatro, estimulando
a sensibilidade e a reflexão crítica do público.
É importante enfatizar que a arte revolucionária, quando
destituída de uma estética revolucionária que
acompanhe suas idéias, logo degenera em arte didática,
em arte falsamente "popular", e o que é mais grave,
em objeto de manipulação política de governos
autoritários, como no célebre caso do realismo socialista
stalinista. Sem a vanguarda formal, pois, a arte revolucionária
perde o seu conteúdo transformador, pois é manipulada
de maneira a se converter em instrumento de mera doutrinação;
e, sem as idéias revolucionárias, a vanguarda formal
perde sua capacidade de transformação, perdendo-se em
estetizações estéreis, em solilóquios
na torre de marfim.
Se observarmos os grandes artífices do cinema revolucionário
pós-soviético — Godard, Gorin, Glauber, Buñuel,
Chris Marker, Solanas, Pasolini, Sanjinez e outros mais — verificaremos
que são artistas que utilizaram um suporte formal sumamente
inovador e transgressivo para veicular suas idéias revolucionárias,
inclusive, em muitos casos, rejeitando as soluções estéticas
preconizadas pelos mestres soviéticos. Glauber Rocha, que começou,
de um certo modo, pagando tributo a Eisenstein e ao neo-realismo italiano
em seus primeiros esforços, irá, no decorrer de sua
carreira, se afastar cada vez mais dos modelos europeus em direção
a uma estética totalmente original, fusão de alegoria
barroca, pajelança e cristianismo libertário, num processo
que acompanha o seu desligamento progressivo das categorias racionalistas
do marxismo em direção a um conceito de revolução
messiânica, que se processa num êxtase místico
revolucionário. Godard, por seu turno, radicaliza a perspectiva
de um cinema filosófico e alicerçado em conceitos, expressando,
todavia, tais reflexões numa narração cada vez
mais descontínua e caótica, que rompe com a linearidade
ideológica colonizante do cinema convencional. A desconstrução
narrativa impede que o espectador aceite passivamente o que está
sendo apresentado, forçando-o a refletir sobre o que vê
e ouve. A idéia é justamente provocar desconforto no
público, perturbando-o em suas convicções mais
firmes, instalando o conflito e desmantelando o consenso.
Pode-se
dizer que uma estética revolucionária tem a função
de despertar o espectador para o conteúdo das idéias
que estão sendo discutidas no filme. É como se fosse
um rastilho, um detonador de consciências, que implode a muralha
de preconceitos que o público já traz dentro de si.
Não é difícil verificar como a narrativa linear
é um instrumento de doutrinação ideológica,
conduzindo o espectador, através do encadeamento linear de
idéias, a uma determinada conclusão previamente determinada
e controlada pelos autores da obra. Um cineasta revolucionário,
ao contrário, não consegue, e nem tampouco deseja, controlar
a interpretação de sua obra, pois apresenta suas idéias
de um modo não-linear, não-didático, forçando
o espectador ao debate, evitando de maneira resoluta o adestramento
ideológico.
Texto
tirado da revista de cinema Contracampo (www.contracampo.he.com.br/)
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