EUA
armam ofensiva contra direitos sociais, segundo Chomsky
Por Brasil de Fato
O
único modo de tirar o governo desta linha – e mudar
o rumo do país – é expulsar e rejeitar o sistema.
Para tanto, a primeira etapa é cancelar o pagamento da dívida
externa, que não é legítima.
O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sozinho, não
tem forças para romper com a subordinação aos
Estados Unidos e com a política imperial das corporações.
Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o professor estadunidense
de lingüística Noam Chomsky afirma que apenas com mobilização
do povo brasileiro, cooperação internacional e conscientização
da população dos EUA Lula vai conseguir criar uma
alternativa de desenvolvimento para o Brasil.
Brasil
de Fato – George W. Bush defende invasões, como a do
Iraque, e repressões a manifestantes antiglobalização,
como a de Miami na reunião da Área de Livre Comércio
das Américas (Alca), dizendo que fazem parte da luta por
liberdade. O que é essa liberdade?
Noam
Chomsky – O povo brasileiro sabe bem do que se trata. No Brasil,
no período da ditadura, os militares justificavam a violência
e a repressão dizendo que o faziam em nome da liberdade.
No momento do golpe de Estado militar, em 1964, o governo estadunidense
mandou uma carta aos militares brasileiros parabenizando-os por
terem proporcionado uma das maiores vitórias da liberdade
no século XX. Para Bush, liberdade quer dizer "faça
o que eu quero." E isso não é contraditório
com organizar golpes militares neonazistas ou, graças ao
modelo neoliberal, impedir que governos democráticos, como
o de Lula, consigam fazer mudanças fundamentais em seus países.
A liberdade do Bush é seguir à risca o que ele quer
e, se algum país resistir, esse país terá sua
economia destruída.
BF
– Essa "liberdade" é imposta pelas corporações?
Chomsky
– Ela é imposta por uma rede de arranjos econômicos
internacionais, que funcionam de tal forma que garantem que governos
não têm como existir a não ser aceitando a ordem
dessa rede. Assim, mesmo que eles possam tentar definir suas políticas
em defesa do povo, os governos acabam muitas vezes fazendo o jogo
das corporações e instituições financeiras.
Os governos, e inclusive o brasileiro, têm duas constituições:
a de seu povo e a dos investidores internacionais. E geralmente
é a segunda que prevalece, porque os investidores ameaçam
o governo, enfraquecem a moeda, ditam políticas públicas.
Eles têm o poder de destruir um governo. Todos os elementos
do pacote neoliberal foram pensados para restringir a democracia.
Quando o Brasil, por exemplo, privatiza uma instituição,
privatiza uma parte de sua economia e de sua política. Reduz
sua arena pública e enfraquece sua democracia. O mesmo ocorre
com a privatização de serviços, como educação,
saúde, segurança e previdência. A vida e a cidadania
são transformadas em assuntos privados e postas à
venda. Isso elimina a arena pública quase integralmente e
esvazia a democracia e a liberdade, algo que Bush pode dizer e citar,
mas que politicamente não quer dizer nada, pois está
vazio.
BF
– Quais são as principais conseqüências
dos quatro anos de governo do Bush para os estadunidenses?
Chomsky
– As pessoas que estão no comando do governo estadunidense
têm uma agenda muito clara: querem fazer nos Estados Unidos
o mesmo que querem fazer no Brasil e no resto do mundo, isto é,
eliminar o sistema democrático e acabar com as conquistas
sociais do século passado. Enquanto restringem o poder de
outros governos no mundo inteiro, desejam aumentar o tamanho e a
força do governo estadunidense para que sirva aos interesses
de um grupo reduzido de privilegiados. Nessa lógica, tudo
o que o governo faz de bom para a população precisa
ser desmontado: previdência, saúde, educação
etc., e só devem sobrar os impostos. No campo da saúde,
o governo investe bilhões de dólares para ajudar corporações
a desenvolverem remédios, que são vendidos a preços
exorbitantes, numa inversão de valores, pois o público
financia o privado para se prejudicar. Ao mesmo tempo, de acordo
com a lei, estadunidenses não têm direito de comprar
remédios no Canadá, onde são mais baratos.
O povo sempre sai perdendo e quem ganha são as corporações
farmacêuticas. Nos EUA, 80% são a favor da saúde
pública e gratuita. Mas Bush diz que isso não é
politicamente possível.
BF
– Internacionalmente, qual é a principal característica
do governo Bush?
Chomsky
– Os tratados de livre comércio são um bom exemplo
de como a política de Bush funciona internacionalmente. É
o livre comércio implementado de toda forma: invasão,
pressão política, ameaças. Na reunião
da Organização Mundial do Comércio (OMC), em
Cancún, o Brasil tentou alguma resistência, mas de
forma limitada. Lula questionou os subsídios governamentais
à agricultura dos países ricos, mas o que realmente
importa é questionar a atuação das grandes
corporações de agronegócio que dominam a produção
e a política agrícola do mundo.
A
política imposta pelas corporações, na verdade,
não tem nada de livre comércio. [O economista inglês
do século XVIII] Adam Smith riria se falassem para ele que
isso que vivemos hoje é livre comércio. Para Smith,
a base do livre comércio é a livre movimentação
das pessoas. Basta ver o número de mexicanos mortos e presos
na fronteira com os Estados Unidos para ter certeza que livre comércio
não traz liberdade para as pessoas. A criação
do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Alcan
ou Nafta, em inglês), em 1994, foi acompanhada pela militarização
da fronteira entre o México e os EUA, o que novamente nos
revela a política de Bush: maximizar os lucros das corporações
e subordinar o povo. Se você ler o último relatório
do Banco Mundial sobre o Nafta, vai ver que os investimentos estrangeiros
aumentaram no México, mas não têm compromisso
com o desenvolvimento do país. Aliás, o total de investimentos
no México caíram por causa da impossibilidade de empresas
locais competirem com grandes corporações. Cada vez
mais, por causa do Nafta, a economia e a política do México
são orientadas por transnacionais. O comércio entre
os Estados Unidos e o México não aumentou de fato;
o que aumentou foi a quantia de dinheiro que corporações
movimentam entre si além de fronteiras. Por exemplo, se a
General Motors faz carros no México, onde pode pagar menos
para os trabalhadores e desrespeitar leis de meio ambiente, e os
envia aos Estados Unidos, isso não é comércio,
mas sim uma operação interna de uma corporação
que se beneficia de acordos internacionais.
BF
– As conseqüências da Alca serão as mesmas
do Nafta?
Chomsky
– Claro. Os dois acordos estão baseados nos mesmos
princípios e se resumem em aumentar o poder das corporações,
que são enormes tiranias internacionais. A Alca significa
submissão à política das corporações
e renúncia ao desenvolvimento econômico dos países,
pois nenhuma transnacional vai apoiar o fortalecimento de concorrentes.
Para a América do Sul, aceitar a Alca é renunciar
a desenvolver seu próprio pólo industrial. Já
os Estados Unidos, depois de assinarem a Alca, irão contra
as regras todas as vezes que quiserem e ninguém vai poder
reclamar, pois são o país mais rico e poderoso. Pode
parecer simplista, mas a Alca funciona, de fato, com a lógica
da colonização.
BF
– Lula oferece uma real resistência a essa recolonização?
Chomsky
– Ele está tentando fazer resistência, mas não
muita. Isso era previsível. Um governo popular de esquerda
no Brasil teria de ser mais reacionário que seus antecessores,
pois teria de preservar o que os donos do mercado chamam de credibilidade
em relação aos investidores internacionais. Também
não dá para criticar Lula pois não há
muitas opções neste sistema complicado. O único
modo de tirar o governo desta linha – e mudar o rumo do país
– é expulsar e rejeitar o sistema. Para tanto, a primeira
etapa é cancelar o pagamento da dívida externa, que
não é legítima. Também é necessário
fazer a distribuição de renda e de propriedade, para
colocar o Brasil no eixo do desenvolvimento e tirá-lo da
subordinação aos imperativos das corporações.
Para que a ruptura com o sistema ocorra, é preciso muito
apoio interno. O povo precisa estar pronto e disposto a entender
as conseqüências: resistir a ataques do sistema, lutar,
trabalhar para criar um novo projeto de desenvolvimento. É
preciso haver cooperação internacional, e o Mercosul,
se consolidado, pode ser uma importante ferramenta. Finalmente,
são necessários movimentos de solidariedade dentro
dos Estados Unidos e de outros países ricos, para impedir
seus governos de realizarem intervenções militares.
Passadas essas etapas, o Brasil terá como realizar verdadeiras
mudanças estruturais que beneficiem seu povo. É um
caminho longo e que depende da organização dos movimentos
sociais.
BF
– O senhor assinou uma carta dirigida a Lula, pedindo que
a direção do Partido dos Trabalhadores (PT) reconsiderasse
a expulsão, do partido, de deputados e da senadora Heloísa
Helena. Qual sua avaliação sobre a situação
do PT?
Chomsky
– Não posso falar do Brasil assim como pessoas que
estão dentro do país. Na minha avaliação,
expulsar esses deputados foi péssimo. Não acho que
parlamentares devam ser expulsos por não aceitarem imposições
do partido. Por isto assinei a carta, porque acho que vai contra
o princípio de democracia que o PT carrega.
BF
– Qual deve ser a estratégia dos movimentos sociais
brasileiros em relação ao governo?
Chomsky
– Os movimentos sociais precisam trazer o governo para seu
lado. É preciso entender que o governo não é
um agente independente. Há imposições estrangeiras,
ameaças de estrangulamentos econômicos e intervenções
militares que obrigam o governo a agir com cautela. Essas ameaças
podem ser vencidas, mas a luta deve ser muito intensa. Por isso,
os movimentos sociais, mais do que nunca, têm de organizar
ainda mais sua base e mobilizar a população brasileira.
Hoje, a mobilização no Brasil já é tremenda,
mas precisa ser ainda maior. O mesmo precisa ocorrer nos Estados
Unidos, onde, se você passear na rua e perguntar paras as
pessoas o que é livre comércio, quase ninguém
saberá responder. É preciso aumentar a consciência
política e a mobilização dos estadunidenses
– isso será uma grande ferramenta para a vitória
no Brasil.
BF
– Como está a mobilização nos Estados
Unidos?
Chomsky
– Maior do que há 10 ou 20 anos, mas ainda insuficiente.
Há cada vez mais descontentamento com o governo e com as
corporações, e isto é um grande avanço.
Dificilmente, hoje, a população estadunidense deixaria
que as forças militares atacassem o Brasil se este decidisse
não seguir as regras do livre comércio. Haveria manifestações
e protestos.
BF
– Quando Lula ganhou as eleições, o jornal estadunidense
The Washington Post publicou editorial em que dizia que Bush deveria
fazer algo para não permitir que o Brasil fosse governado
por um perigoso comunista. O senhor está dizendo que o governo
estadunidense não invadiria o Brasil?
Chomsky
– O governo estadunidense não tem força suficiente
para invadir o Brasil, o que não quer dizer que não
tentaria. Ao mesmo tempo, em nosso mundo, há outros mecanismos
para derrubar um governo e o principal deles é o estrangulamento
econômico. A trajetória do Brasil, e do Lula, certamente
não será fácil.
Quem
é
Avram
Noam Chomsky, 71, linguista estadunidense, é professor no
Massachusetts Institute of Technology (MIT), um dos principais centros
de pesquisa dos EUA. Um dos principais críticos da política
e da mídia do seu país, escreveu mais de 60 livros,
entre eles 23 sobre a política dos EUA. Atualmente, é
um dos mais renomados pensadores de esquerda da atualidade.