Entrevista do JB com Noam Chomsky

 

Entrevista do Jornal do Brasil com o Noam Chomsky sobre a situacao atual dos E.U.A.

Noam Chomsky: um pensador crítico da política externa dos Estados Unidos

Desde terça-feira, um dos mais importantes pensadores americanos, Noam Chomsky, professor do Massachussetts Institute of Technology (MIT), dá entrevistas uma atrás da outra, faz conferências e palestras e tenta, assim como todo americano, superar o trauma deixado pelos atentados terroristas contra as torres do World Trade Center, em Nova Iorque, e ao prédio do Pentágono, em Washington. Chomsky, um pensador dissidente do establishment político americano, é chamado a ajudar a encontrar respostas às perguntas que se multiplicam numa superpotência consumida pelo medo e pela perplexidade, e com desejo surdo de vingança que cresce diante do cenário de devastação deixado pelo terror. Para ele, os atentados no coração dos Estados Unidos já são um divisor de águas na História não só do país mas do Ocidente rico de um modo geral. Esta é a primeira vez em quase dois séculos que os Estados Unidos são atacados em seu próprio território. É a primeira vez também que um país do Primeiro Mundo é atacado em casa, nessas proporções, supostamente por agressores do Terceiro Mundo. ''É uma mudança gigantesca'', disse Chomsky em entrevista por telefone ao Jornal do Brasil, de sua casa, em Boston.

Crítico contundente da política externa de seu país, o pensador americano lembra que o principal suspeito dos atentados, o saudita Osama bin Laden, faz parte de um grupo de fundamentalistas islâmicos que foi treinado e armado polos Estados Unidos durante a Guerra Fria. Hoje, afirma, há um profundo ressentimento em relação aos EUA no Oriente Médio.

- A sociedade americana dificilmente será a mesma depois da última terça-feira. O que vai mudar na cabeça das pessoas?

- Os atentados foram um divisor de águas para os Estados Unidos e para o Ocidente de um modo geral. Se olharmos para a História americana, esta é a primeira vez desde a guerra de 1812, ou seja, em 200 anos, que o território nacional foi atacado. Pode-se falar de Perl Harbour, mas lembremos que os dois lugares atacados na época, Havaí e as Filipinas, eram colônias e não território nacional. Por ser o primeiro ataque ao território, representa uma grande mudança. O mesmo é verdadeiro para a Europa e o Ocidente de um modo geral. A Europa passou por guerras sangrentas, mas foram internas. O Sul - o que hoje chamamos de Terceiro Mundo, as ex-colônias - nunca atacou a Europa, mas foi atacado por ela por centenas de anos. Esta é portanto a primeira vez que a História toma uma outra direção: as grandes potências guerreiras são as vítimas e não os perpetradores. É uma mudança gigantesca.

- E de que forma a seu ver esta mudança se manifestou ao longo dos últimos dias?

- Pode-se observar isto na reação dos Estados Unidos e particularmente na reacão da Europa, que adotou uma postura reflexiva, considerando o episódio algo sem precedentes, que nunca aconteceu e etc. E é verdade para o Ocidente. Mas não é verdadeiro para o resto do mundo. Esta foi a norma para o resto do mundo por muito tempo. Mas esta cultura imperial está profundamente arraigada e é muito difícil para as pessoas entenderem. Sim, este episódio é um marco e tambem representa uma grande mudança. O New York Times, num artigo de hoje (sexta-feira), diz que a partir de agora ou se colabora com os Estados Unidos ou será destruído. Isto não tem precedente histórico.

- Que tipo de reação pode-se esperar dos Estados Unidos a partir de agora?

- Espero algum tipo de operação violenta. Ela será realizada com o conhecimento, porque eles certamente sabem, de que isto é exatamente o que pessoas como Osama bin Laden [para os EUA, o principal suspeito dos atentados]desejam porque vai ajudá-las a reunir apoio.

- E como responder a um inimigo pouco convencional como Bin Laden?

-Da última vez que eles (as autoridades americanas) decidiram atacar Osama bin Laden, bombardearam uma fábrica de produtos farmacêuticos no Sudão que nada tinha com isto. Morreram milhares de pessoas, mas nunca se saberá ao certo, porque quando o Sudão pediu uma investigação às Nações Unidas, os Estados Unidos bloquearam. Não tenho dúvida, eles vão atacar onde quiserem.

- O que está por trás dos atentados em Nova Iorque e Washington: ódio aos Estados Unidos, religião sentimento anti-ocidental?

- Vamos supor, talvez corretamente, que os ataques tenham sido obra de um grupo próximo de Osama bin Laden, os chamados afeganis, que não são necessariamente afegãos, incluindo o próprio Bin Laden [que é saudita]. Foram pessoas recrutadas para a guerra no Afeganistão contra os russos, armados e treinados pelos Estados Unidos. Os serviços de inteligência do Paquistão recrutavam os elementos mais violentos que conseguiam encontrar e estes eram radicais islâmicos do Oriente Médio. Podemos ter uma boa noção do que eles querem hoje. Osama bin Laden foi entrevistado algumas vezes pelo jornalista britânico Robert Fisk, o mais eminente correspondente no Oriente Médio há décadas. Ele deixa claro o que quer. E o que ele quer, em suas próprias palavras, é liberar os países islâmicos de agressores estrangeiros - primeiros os russos do Afeganistão e depois os americanos da Arábia Saudita - e também derrubar os regimes corruptos de Arábia Saudita, Egito, Jordânia e outros para implantar o que eles consideram a forma correta de um regime islâmico. Esta parece ser a maior preocupação. Por isso, agora pessoas como Osama bin Laden estão rezando por um ataque massivo para que possam recrutar mais gente. Naquela região há um enorme ressentimento pelas políticas dos Estados Unidos, em primeiro lugar, e da Grã-Bretanha na região. Um grande número de pessoas sofreu muito por causa delas.

- Na Guerra Fria, era o comunismo contra o capitalismo. Há o risco de uma nova polarização, agora opondo o Ocidente ao mundo islâmico?

- Não é inteiramente verdadeiro sobre a guerra fria. Pegue o Brasil, por exemplo. Quando aconteceu o golpe militar no Brasil, foi verdadeiramente contra o comunismo? Claro não. E o mesmo vale para quase todos os acontecimentos da Guerra Fria. Os conflitos daquela época tinham a Guerra Fria como pano de fundo. Mas os Estados Unidos e a Rússia usaram os conflitos da Guerra Fria como uma ferramenta para justificar intervenções que aconteceram por razões bem diferentes. Quando os Estados Unidos apoiaram os golpes no Brasil, Argentina e Chile, em outras partes da América Latina e no Sudeste da Ásia, as questões da Guerra Fria eram o pano de fundo. Estes tipos de acontecimentos precedem a Guerra Fria, atravessaram a Guerra Fria e continuaram depois da Guerra Fria. Olhe o caso do Oriente Medio. Imediatamente depois do colapso da União Soviética, o governo de George Bush [pai do atual presidente americano, George W. Bush], em mensagem ao Congresso sobre o orçamento militar, em 1990, depois da queda do Muro de Berlim, fez uma análise mundial e referiu-se ao Oriente Médio. Disse: Temos que manter a maior parte de nossas forças de intervenção no Oriente Médio. E deixou claro que os russos não eram os responsáveis pelas ameaças. O que era bem verdadeiro. Eles fingiram rivalidade nos 40 anos precedentes mas era apenas um pretexto. Bush foi franco, mas felizmente para ele, a mídia calou-se a este respeito.

- Há risco de uma disseminação de um sentimento anti-Islã nos Estados Unidos e em outros países ocidentais?

-Não anti-Islã. Falar oposição ao Islã é extremamente enganoso. Vamos observar os fatos: o maior país islâmico do mundo é a Indonésia, que é um forte aliado dos Estados Unidos. Sempre foi. Quando houve o golpe militar na Indonésia em 1965, extremamente sangrento, os Estados Unidos apoiaram, assim como apoiaram o golpe no Brasil, em 1964, e essencialmente pelas mesmas razões. Fora o talibã no Afeganistão, o mais radical Estado islâmico é a Arábia Saudita, um cliente dos Estados Unidos. Nos anos 80, os chamados afeganis, Osama bin laden e outros, recrutados, armados e treinados pela CIA, eram radicais fundamentalistas islâmicos. Ou olhe o que aconteceu nos anos 80, quando os Estados Unidos travaram uma guerra na América Central, um dos maiores inimigos foi a Igreja Católica. É só olhar a História e os choques de civilizações. Nos Bálcãs, por exemplo, os Estados Unidos pegaram os muçulmanos da Bósnia como seus clientes. E eles estava lutando contra os cristãos ortodoxos.

- O que está em jogo agora?

- O que aconteceu é novo em escala, mas não é a primeira vez. Vinte anos atras, em 1983, o Exército dos Estados Unidos, que é de longe a força militar mais poderosa do mundo, foi expulso do Líbano por um terrorista suicida. Quando um homem-bomba se lançou contra uma base militar americana, matando vários soldados, os Estados Unidos se retiraram. Terroristas suicidas são incontroláveis.


- Então como as Forças Armadas, com seus métodos convencionais, poderão lidar com este tipo de inimigo?

- Eles não podem assim como não conseguiram no Líbano. Estes são problemas que terão de ser tratados encarando-se as questões que levam a esta situação. Elas crescem a partir de alguma coisa. Não se trata de justificativa para o crime, mas elas nascem de alguma coisa, não surgem do nada. Vêm de uma enorme reação popular de hostilidade em relação às políticas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha para a região. Tome por exemplo o Iraque. Não se sabe quantas pessoas morreram por causa das sanções. Uns dois anos atrás, a secretária de Estado [Madeleine]Albright, diante do número de meio milhão de crianças mortas, disse bem este é um preço alto mas estamos dispostos a pagá-lo. Imagine o que sentem as pessoas da região. Pense nos territórios ocupados. As pessoas no Ocidente podem decidir não prestar atenção, mas as pessoas lá na região definitivamente prestam atenção e sabem muito bem quem é o responsável. Helicópteros, aviões militares e mísseis atacam alvos civis nos territórios ocupados. São helicópteros, aviões militares e mísseis americanos - e eles sabem disto.

- O senhor vê o risco de uma escalada de violência, com reação seguida de contra-reação e assim por diante?

- É muito provável. Conhecemos este tipo de dinâmica, embora em menor escala. Na Irlanda do Norte, por exemplo, os dois lados querem matar em retaliação ao último ataque. Sabemos como acontece. É uma escalada de violência.

- Este tipo de terror pode se espalhar para a Europa?

- Sem dúvida. Se eles cooperarem com os Estados Unidos, sem dúvida irá acontecer.

- E que tipo de guerra o senhor acha que virá?

- Provavelmente o tipo de guerra que vimos na terça-feira pela primeira vez no Ocidente, mas que é muito familiar ao Terceiro Mundo, onde tem sido assim por séculos.

- Que armas devem ser empregadas contra um inimigo difícil de identificar?

- Eles vão usar a tecnologia. O que os Estados Unidos estão fazendo agora é o que chamam de revolução na tecnologia militar. A guerra dos Bálcans foi um exemplo disto, a guerra do Iraque também. É uma guerra na qual se ataca de uma boa distância, com uma força massiva

- A superpotência que gasta bilhões de dólares em defesa e até planeja construir um escudo antimísseis no espaço, levando a corrida armamentista para as gal xias, mostrou ser vulnerável ...

- O escudo antimísseis não é destinado à defesa. Lembre-se. Todo aparato militar ofensivo da História sempre foi disfarçado de defensivo. Você consegue vender algo como defesa, mas não consegue vender como ataque. Este é um programa de militarização do espaço e o comando militar para o espaço é bem franco em relacão a isto. Há documentos que explicam muito claramente o que estão fazendo. Querem fazer a militarização do espaço para proteger seus interesses comerciais e seus investimentos. Isto vai aumentar as desigualdades entre os que têm e os que não têm e vai levar a mais confrontos.

- Desde a manhã de terça-feira, os americanos sentem que não estão seguros em sua própria casa. Que conseqüências podem vir deste sentimento de vulnerabilidade?

- Os americanos estão sentindo-se vulneráveis pela primeira vez em 200 anos e há o crescimento de um sentimento nacionalista.

- E o que o senhor, pessoalmente, desejaria que mudasse a partir de agora na mentalidade da sociedade americana?

- O que espero é que, ao invés de achar que têm de ser lideradas por sentimentos de vingança, mesmo sabendo que isto levará a mais violência, o que as pessoas deveriam fazer é reavaliar a situação, perguntando qual é o seu pano de fundo e o que podemos fazer para melhorar. É a única forma de proteger a si próprio. Mas com o país entrado num frenesi nacionalista é difícil pensar até mesmo na própria segurança.