Em diferentes
épocas escritores brasileiros estiveram envolvidos com o anarquismo.
Alguns com participação ativa; outros através de seus escritos e,
finalmente, os que adotaram posição individualista.
Relembramos
Afonso Schmidt, na juventude participante das redações dos jornais
libertários. Deixou obra no gênero poesia, teatro, romance, contos.
Harmonia é um dos contos literalmente anarquista e, também, o romance
Colônia Cecília, em que misturando ficção e realidade provocou enorme
desinformação, só recentemente sanada através de pesquisas históricas.
Assinalamos o Dr. Fábio Luz, colaborador assíduo da imprensa libertária,
introdutor do "romance social" em nossas terras com o livro Ideólogo.
Produziu uma série de romances, peças de teatro, estudos científicos
e pedagógicos. Maria Lacerda de Moura, injustamente esquecida, competente
antifacista de primeira hora, divulgou teses sobre o amor livre e
a liberação feminina, que tantos arrepios e indignação provocaram
no Brasil vetusto e cavernoso dos anos 30. Dr. Martins Fontes, santista,
poeta parnasiano, deixou entre sua enorme produção poética, inúmeras
de conteúdo libertário, sem falar em suas conferências assinaladas
no livro Fantástica, do qual destacamos a sobre Kropotkin. José Oiticica,
figura de proa do movimento anarco-sindicalista, polemista destroçador,
inigualável nos escritos satíricos e nas cartas abertas dirigidas
aos figurões e manda-chuvas da época, deixou infindável produção de
escritos políticos dispersos nos jornais diários do Rio de Janeiro.
Em Minas Gerais, citamos Avelino Foscolo, colaborador da imprensa
libertária, escreveu vários romances como O Mestiço, Vulcões, A Capital
e que só recentemente estão sendo reeditados.
Todos
os mencionados mereceram pouquíssimo ou nenhum reconhecimento pela
literatura oficial. Entretanto há duas excessões: Campos de Carvalho
e Lima Barreto. Em entrevista ao jornal O Globo, em 08/04/95, respondendo
a pergunta sobre o vigor libertário de seus livros, onde seus personagens
sempre se voltam contra alguma autoridade, afirmou: "Eu sempre fui
anarquista, liberto de qualquer dogma". Sabemos que Campos de Carvalho
foi, durante sua juventude, colaborador dos jornais libertários A
Plebe e A Lanterna. Hoje, reconhecido como escritor importante, teve
romances renovadores como A lua vem da Ásia, A vaca do nariz sutil
e A chuva imóvel, reeditados pela Editora José Olimpio. Campos de
Carvalho é anarquista individualista (Nota do Libera...: Campos de
Carvalho faleceu em São Paulo no dia 10 de abril de 1998, aos 82 anos).
Lima
Barreto teve seus méritos reconhecidos, porém só depois de seus falecimento.
É dele que vamos nos ocupar mais extensamente.
Lima
Barreto, anarquista
Afonso
Henriques de Lima Barreto, autor genial de Clara dos Anjos, Recordações
de Isaías Caminha, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, etc., mulato
de temperamento tímido, porém irreverente e desabusado em seus escritos.
Em geral trajava roupas amarfanhadas, sapatos empoeirados, garofinha
a subir indiscreta pelas orelhas e colarinho encardido. Palheta equilibrada
no alto da cabeça. Corpo exalando azedume do suor curtido nos subúrbios
proletários onde sem opção habitava.
Freqüentador
contumaz de tendinhas encardidas, se afogava em pinga com Fernet,
na tentativa de fugir da grande tragédia da sua existência: o pai
doido, a miséria em que a duras penas sobrevivia, a cor, a indiferença
social, a impossibilidade de mobilizar seu potencial criativo.
Certa
feita, advertido de que a cachaça era prejudicial a literatura, replicou
que o único prejuízo era a burrice.
Reprovado
por três vezes por Licínio Cardoso na cadeira de Mecânica Racional,
abandona os estudos de engenharia e efetua concurso para burocrata
do Ministério da Guerra. Nessa repartição encontra Domingos Ribeiro
Filho, anarquista declarado, atuante nos meios libertários e que o
teria influenciado teoricamente.
O movimento
anarco-sindicalista começa a crescer. E, 1906 realiza-se o 10 Congresso
Operário Brasileiro, no Rio de Janeiro. Com o grupo de intelectuais
anarquistas, entre os quais Domingos Ribeiro, Fábio Luz, Curvelo de
Mendonça, Elísio de Carvalho, Lima Barreto lança a revista Floreal,
de curta existência. Em 1913 é realizado o 20 Congresso Operário Brasileiro,
que mobiliza o escritor. Em Lima Barreto, sob a carapaça de solitário,
tímido, introvertido, subsistia um espírito fino, alma sensível, inteligência
desperta, vigoroso talento pronto para explodir no combate as injustiças
sociais, aos desmandos da polícia e a exploração dos poderosos. E
isto o fez aderir de vez aos ideais anarquistas.
A partir
do ano de 1914 crescem as lutas operárias e, conseqüentemente, a repressão
policial. Levas de anarquistas são presos e atirados como fardos em
navios para a Europa. Lima Barreto coloca resolutamente sua pena a
favor dos oprimidos, proletários e anarco-sindicalistas.
Trilhando
as posições libertárias zurze feroz a guerra, o militarismo, a opressão
social, o patriotismo, a papuchada político-partidária, o serviço
militar obrigatório, o nacionalismo.
Troça
do falso feminismo, chá com torradas das elites endinheiradas, sequiosas
de se igualarem aos homens nos seus piores vícios.
Dardejou
o ópio do futebol, o tráfico de influências, os poderosos do momento,
o imperialismo, a falta de caráter nacional.
Compreendendo
precocemente que a linguagem e a gramática se tornam instrumentos
da opressão e dominação de classes, investiu decidido contra os retóricos
tipo Rui Barbosa, parnasianos e simbolistas cultuadores de uma língua
que impedia a expressão da vida real.
Das
centenas de páginas de seus romances, fufam em turbilhão seus personagens
simples, toscos, suburbanos, talhados vigorosamente por sua escrita
rústica, direta, oxigenante, libertadora.
As publicações
libertárias da época, A Voz do Trabalhador, A Patuléia, A Plebe, A
Lanterna, O Debate, sem falar das revistas e dos jornais diários,
estão recheados de suas crônicas nos mais de vinte pseudônimos com
os quais firmou sua posição anarquista.
Alguns
escribas marxistas de visão estrábica se entusiasmaram com a defesa
da revolução Russa feita por Lima Barreto. A esses partidários do
"socialismo camisa de força", entretanto, diremos que todo libertário
a defendeu inicialmente, por se tratar de tentativa de transformação
social, feita pelo povo sem as diretrizes ditatoriais que posteriormente
tomou. Quanto ao maximalismo que defendeu, era, nada menos, que a
interpretação anarquista da derrubada de um regime despótico e a instalação
da autogestão generalizada. Para comprovação é suficiente ler o que
escrevia na época.
Quando
da grande greve de 1917, em São Paulo, novamente sai Lima Barreto
em defesa dos anarquistas presos e deportados, após cessado o movimento.
Em novembro
de 1918 explode no Rio um movimento que visava a derrubada das instituições
e o estabelecimento de um regime socialista. A rebelião fracassa e
centenas de anarquistas são presos e processados. Lima Barreto novamente
se coloca em defesa dos revolucionários atacando violentamente o chefe
de polícia Aurelino Leal, a quem acoima de "Trepoff barbante". O escritor
estava, naquele momento, internado em um hospital.
Lima
Barreto não foi orador de comício, agitador de assembléias, organizador
de greves, conspirador de movimentos visando derrubadas de autoridades,
freqüentador de grupos operários e sindicatos; porém, através de sua
pena esteve coerentemente com o movimento anarco-sindicalista e sempre
com ele.
Ideal
Peres
Letralivre
# 8, de agosto de 1995.