Adeus a Antônio Martinez

Na madrugada do dia 29/10/98 falecia o militante anarquista Antônio Martinez. Contava com 83 anos quando teve de ser internado no hospital de Jabaquara em São Paulo; foi submetido à uma cirurgia que arrancou-lhe um tumor maligno da cabeça. Teve alta e, quando convalescia em casa, foi internado novamente no hospital do Parque Mundo Novo, onde veio a falecer de pneumonia dupla.

"Martins", como era carinhosamente chamado pelos seus companheiros, deixou-nos às 3:30 h da manhã. Seu velório foi no cemitério do Araçã, onde foi enterrado às 16:00 h do mesmo dia. Seu caixão simples não continha flores, apenas uma velha bandeira negra improvisada de última hora e o cristo no crucifixo de seu velório fora virado para a janela, simbolizando o último gesto de sua dignidade - se deus não o acompanhou em vida, também não o acompanharia na morte.

Martins nada deixou escrito, recusava-se relutantemente a qualquer atividade teórica; também recusava qualquer tentativa de registro pessoal: fotos, depoimentos, entrevistas, nada...queria permanecer anônimo. Nós mesmos o vínhamos assediando para o registro de suas memórias e, quando parecia tê-lo convencido, a morte nos impediu. Apesar disto, todos que passavam pelo CCS conheciam o Martins.

O exemplo sempre foi sua maior propaganda e da qual ele sabia faze-lo como ninguém. Nas atividades do CCS era sempre o primeiro a chegar, jamais se atrasava...sentava-se sempre no fundo da sala e, quando algum inadvertido conferencista tocava nalgum tema de seu interesse, lá estava ele, com dedo em riste, falando alto e firme: "Eu discuto com qualquer um: advogado, economista...qualquer um"; e de fato discutia.

Martins foi aquele tipo de militante simples e anônimo de que fala Penef1, "Atores secundários, circunstanciais, nem lideranças ou celebridades, nem pessoas obscuras perdidas na multidão; mas pessoas que têm ação organizada, sem vantagem material ou poder, sem ser membro de uma burocracia" e que dedicou toda a existência a uma causa. "É uma enorme felicidade saber que o Anarquismo tem produzido figuras tão íntegras e bonitas como ele. É uma das muitas verdades que temos e devemos passar para frente", dizia Margareth Rago2 quando perdemos o companheiro Jaime em maio deste mesmo ano. Martins era um "tipo humano" de uma época e de um meio muito particular, possuía uma cultura enciclopédica e uma simplicidade de operário manual.

A geração da qual pertenceu divertia-se lendo, entre outras coisas O Manolin e o II Certame Socialista; de uma geração de velhos militantes do movimento anarquista na capital de São Paulo, homens que iniciaram sua militância já no início da década de 30, que dedicaram sua vida a uma concepção de mundo, onde o valor de um ideal que se pretende realizar toma o sentido de sua vidas, um ethos para o qual se tende a basear sua conduta no mundo. Se é verdade o que a sociologia diz que todo homem participa, de uma maneira ou de outra, da história de uma determinada sociedade através de sua biografia, isso é sobretudo verdade em homens como Martins. Depois de ter ganho sua confiança me contava suas "façanhas" que iam desde a batalha contra os integralistas na Praça da Sé, onde empunhou armas junto ao movimento operário em 1934, até sua conviv6encia com os moradores de um cortiço no bairro do Brás, onde viveu a maior parte de sua infância e de sua adolescência. Personalidade reta, firme, como, como é possível tanta convicção reunida em um só homem? "Ah, se eu tivesse meus cinqüenta anos...", suspirava sentindo o peso dos seus oitenta anos de muita atividade libertária; "Se tenho esses cabelos brancos e estou neste movimento até hoje, é porque não encontrei nada melhor lá fora!", falava com certeza de que só um homem no final da vida teria.

"Abaixo todos os dogmas religiosos e filosóficos, eles nada mais são do que mentiras, a verdade não é uma teoria, mas um fato!"3, são palavras que encontravam-se incrustadas em sua personalidade. Nele o ideal ganhava expressividade e vitalidade; por ele concretiza sua identidade e dava substância a sua existência eminentemente libertária; com ele vencia os limites, adquiria força, entusiasmo, esperança e permitia-se transpor a realidade, por mais invencível que se lhe apresentasse.

As memórias deste velho companheiro se encontram de esparsas recordações entre jovens e velhos que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Nunca conheci uma pessoa onde simplicidade e idealismo fossem reunidos com tamanho vigor. No seu leito de morte, como se o prelúdio de sua partida houvesse lhe sido anunciado, me disse: "Tanta coisa grande para se fazer rapaz, e eu aqui desse jeito...!"

Antônio morreu...a beleza de sua energia, de ouvir suas palavras e depois poder olhar para as coisas com um certo otimismo idealista, de ver que o sonho também tem mais de 80 anos e vive como se tivesse 17, tudo isto, tenho certeza, ele deixou para aqueles que o cercavam. A nossa dor é por tê-lo deixado partir assim injustamente, sem história...os homens não merecem monumentos, mas livros, registros de suas frustrações e vitórias. É uma pena que as futuras gerações se furtem delas...

Descansa meu velho...você merece, mas tenha a certeza que não morrestes totalmente!

Nildo Batata (Centro de Cultura Social/SP)

Referências:

1 PENEFF, M. Mythes n life stories. In: SAMUEL, R. & THOMPSON, P. The Mytes we live by. London, Pontledge, 1990.

2 RAGO, M. "Quem foi Jaime Cubero?", mural eletrônico de Jaime Cubero.

3 BAKUNIN, M. Bakunin por Bakunin...cartas. Brasília, Novos Tempos, 1987.

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