Renato
Ramos & Alexandre Samis
(Federação
Anarquista do Rio de Janeiro-FARJ)
“Eram
5 horas quando me levantei. O Passos, acordado não sei desde que horas,
estava sentado na cama, lendo o “Determinismo e Responsabilidade”,
de Hamon. Tomei a toalha e desci, para banhar o rosto. Quando voltava
do pateo, enxugando-me, vi dois individuos, que logo tomei pelo que
realmente eram, de revolver em punho, dirigirem-se para mim, perguntando
asperamente.
-
Onde está o Domingos Passos?
Prevendo
uma dessas violencias de que o nosso querido companheiro tem sido
tantas vezes victima, senti forte desejo de escondel-o e neguei sua
presença, dizendo:
-
Domingos Passos não mora aqui!”
Esse
pequeno trecho do depoimento do operário Orlando Simoneck ao jornal
A Pátria1, tomado em 16 de março de 1923, expressa
claramente alguns aspectos da situação então vivida por aquele rapaz
mestiço, neto de avós índios2, carpinteiro de profissão,
anarquista e ativo sindicalista do ramo da construção civil: o “camarada
Passos” era, já naquele ano, o alvo preferido da Polícia carioca e,
se não o mais, um dos mais queridos e respeitados militantes operários
do então Districto Federal. Outra característica notável de
Domingos Passos, destacada no depoimento de Simoneck, era seu incansável
autodidatismo, sua sede pela instrução e pela cultura, que o fazia
varar as madrugadas devorando os livros da pequena biblioteca de Florentino
de Carvalho, que morava naquela mesma casa da Rua Barão de São Félix,
muito próxima da sede do seu sindicato.
Domingos
Passos era natural do Rio de Janeiro, tendo nascido, provavelmente,
na última década do século XIX3. Sua trajetória
militante está em grande parte ligada à sua organização de classe,
a União dos Operários em Construcção Civil (UOCC), fundada
como União Geral da Construcção Civil (UGCC) em abril de 1917
(a UGCC havia sido, na verdade fundada em 1915, mas teve existência
breve). Apenas 2 meses após a sua fundação, a UGCC já com mais de
500 filiados, conseguiu mobilizar mais de 20.000 trabalhadores para
o sepultamento dos 13 operários mortos no desabamento do New York
Hotel, que se transformou em uma grande manifestação contra a ganância
patronal.
No
rastro da greve geral iniciada em São Paulo após o assassinato do
jovem sapateiro Martinez, a UGCC e outras associações de resistência
declararam, em 22 de julho de 1917, a extensão do movimento para o
Rio de Janeiro, tendo como conseqüência imediata o fechamento de várias
sedes sindicais pela Polícia até o início de setembro e a prisão de
vários militantes4. Outra conseqüência nefasta para
a luta dos trabalhadores, foi o banimento da Federação Operária
do Rio de Janeiro (FORJ), que só veio a ser substituída em 18
de janeiro de 1918 pela União Geral dos Trabalhadores (UGT).
Em
26 de junho de 1918, a UGCC mudou sua denominação para UOCC. Em outubro
desse ano, a epidemia de gripe espanhola causou a morte de mais de
12.000 pessoas no Rio de Janeiro e a fome assolou a população trabalhadora,
principalmente nos cortiços do Centro e nos subúrbios. Criou-se então,
a partir da UOCC, o Comitê de Combate a Fome, que a despeito
de sua intenção e da tragédia vigente, teve várias de suas reuniões
interrompidas pela polícia e quase todos os seus integrantes presos5.
Em
18 de novembro de 1918, a UOCC participou ativamente da tentativa
de greve insurrecional, tendo sua sede novamente fechada durante a
onda repressiva que se seguiu, desta vez por mais de 70 dias. Centenas
de operários foram encarcerados e a UGT, com apenas 9 meses de vida,
foi fechada por decreto federal.
Em
abril de 1919, após um ano e meio de disputas internas entre os sindicalista
revolucionários (anarquistas) e a “facção conservadora” da UOCC6,
os primeiros elegeram uma nova comissão executiva e conseguiram que
a organização voltasse a ser regida pelas Bases de Acordo originais
(em dezembro de 1917, um manobra dos conservadores havia “legalizado”
um estatuto que previa os cargos de presidente e vice, e que nunca
havia sido reconhecido pelos libertários).
Em
maio de 1919, a UOCC conquistou finalmente às 8 horas de trabalho
diário para a categoria e, em julho, vários de seus membros participaram
da fundação do novo organismo federativo, a Federação dos Trabalhadores
do Rio de Janeiro (FTRJ).
Nos
meses de setembro e outubro de 1919, uma feroz repressão foi desencadeada
contra as associações de resistência do Rio de Janeiro. No dia 10
de setembro, a sede da UOCC e de várias outras entidades de classe
foram atacadas pela Polícia, tendo sido efetuadas dezenas de prisões.
No dia seguinte, a FTRJ convocou uma manifestação de protesto contra
a violência policial, que degenerou em um conflito com a Força Pública,
resultando feridos em ambos os lados.
Foi
durante esse duro período que registramos a primeira aparição “oficial”
de Domingos Passos, quando este foi eleito, em 16 de outubro de 1919,
o 2o Secretário da UOCC e, em dezembro desse mesmo ano,
1o Secretário para o período de janeiro a julho de 19207.
Destacamos, no entanto, que o fato de Domingos Passos ter passado
a ocupar tais cargos na organização em um momento tão difícil, indica
que sua trajetória na UOCC vinha, no mínimo, de alguns meses antes.
Domingos
Passos foi indicado, junto com José Teixeira8, delegado
da UOCC no 30 Congresso Operário Brasileiro (1920),
quando foi eleito Secretário Excursionista da Confederação Operária
Brasileira (COB)9. Ao ser escolhido para tal
cargo, Passos certamente já se destacava no campo do proletariado
organizado por sua inteligência e oratória, cultivada no cotidiano
de lutas de sua categoria. Segundo Pedro Catallo10,
Passos era “dono de uma oratória suave, envolvente e agressiva o mesmo
tempo, multiplicava a afluência aos comícios, desejosa de ouvi-lo
falar. Depois, raramente chegava ao seu domicílio porque a polícia
cercava-o no caminho e levava-o para o xadrez, onde repousava
de quinze a trinta dias por vez”.
A
repressão durante todo o governo Epitácio Pessoa foi brutal, com um
sem número de deportações de militantes anarquistas, prisões, torturas
e assassinatos, fechamentos de sindicatos e empastelamentos de jornais
operários. Em outubro de 1920, a polícia dissolveu à bala uma passeata
de trabalhadores na Avenida Rio Branco e, não satisfeita, novamente
assaltou a sede da UOCC, ferindo 5 trabalhadores, prendendo 28 e,
posteriormente, deportando 8 destes11.
O
movimento operário sentiu os golpes, e declinou a partir de 1921.
Os sindicatos “amarelos” e “cooperativistas” se fortaleceram rapidamente,
e passaram a disputar a hegemonia de diversas categorias com os sindicatos
revolucionários. Entre os anarquistas, desmoronaram as esperanças
na Revolução Russa, com a chegada das notícias sobre a repressão bolchevique,
notadamente o massacre de Kronstadt, em março de 1921.
Em
16 março de 1922, nove dias antes da fundação do Partido Comunista,
a UOCC publicou o documento Refutando as afirmações mentirozas
do Grupo Comunista, declarando sua incompatibilidade com os “comunistas
de estado”12. Este importante manifesto certamente
teve a participação de Domingos Passos. Este, como outros militantes
da Construção Civil foram, por toda a década de 1920, os oponentes
mais ferrenhos e intransigentes da doutrina bolchevista, encarnando
a consciência crítica e, em determinados aspectos, punitiva, dos quadros
comunistas.
“Na Rússia, onde
alguns membros do partido Communista, entronizados no poder, exercem
a ditadura em nome do proletariado, estão sendo perseguidos, encarcerados
e mortos todos os revolucionários da esquerda, mormente os combatentes
anarquistas. Se é a obra de tal partido que os do Grupo Communista
propagam e pretendem realizar, outra não pode ser a atitude da Construcção
Civil, senão a de opozição à ditadura, e aos seus ditadores”.13
Em
julho de 1922, no rastro do esmagamento da revolta dos tenentes do
Forte Copacabana, a repressão fechou o jornal O Trabalho, órgão
da UOCC, do qual Passos foi assíduo colaborador. Um novo bastião dos
anarquistas na imprensa ficou a cargo de outro militante da Construção
Civil, o carpinteiro e jornalista português José Marques da Costa,
redator da Secção Trabalhista do jornal A Pátria.
Em
1923, continuamente perseguido pela polícia, Domingos Passos afastou-se
da Comissão Executiva da UOCC e passou a se dedicar à propaganda e
à organização federativa, tendo viajado duas vezes ao Estado do Paraná14
para colaborar com sindicatos de resistência locais. Durante todo
o primeiro semestre deste ano foi um dos principais articuladores
da refundação da Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ),
já que a FTRJ, sob o controle dos bolchevistas, agonizava e, cada
vez mais, aproximava-se taticamente da Confederação Sindicalista
Cooperativista Brasileira (CSCB), entidade que congregava desde
sindicatos colaboracionistas até instituições reacionárias como a
Liga de Defesa Nacional e o Centro Industrial do Brasil15.
Quando a FORJ reapareceu, em 19 de agosto de 1923, Passos foi eleito
para o Comitê Federal16.
Assim
como José Oiticica, Carlos Dias e Fábio Luz, Domingos Passos era freqüentemente
convidado para conferências nas sedes sindicais. Também participava
ativamente dos festivais operários, atuando nas peças teatrais organizadas
pelo Grupo Renovação, declamando e palestrando sobre
temas sociais. Certamente, foram esses festivais alguns dos poucos
momentos de lazer que Passos usufruiu em sua vida de rapaz trabalhador
e ativista sindical.
A
FORJ, refundada por seis associações de classe (Construção Civil,
Sapateiros, Tanoeiros, Carpinteiros Navais, Gastronômicos e o Sindicato
de Ofícios Vários de Marechal Hermes), até meados de 1924 teve a adesão
de mais cinco categorias importantes: Fundidores, Ladrilheiros, Ferradores,
Metalúrgicos e Operários em Pedreiras. O sindicalismo revolucionário,
a despeito da repressão estatal e das manobras bolchevistas, se fortalecia
sob a orientação da FORJ, que organizava uma conferência intersindical
e planejava para aquele ano o 4o Congresso Operário
Brasileiro.
“E é por isso,
simplesmente por isso que dia a dia os trabalhadores vão abandonando
os embusteiros, enveredando pelo caminho da organização operaria,
não para fortalecer nenhum partido "socialista" ou burguez,
e sim para fortalecerem a si mesmos, nos seus organismos de resistencia
e de combate as explorações da sociedade actual.
Quando a organização
operaria tiver attingido ao apogeu almejado, uma das suas principaes
preocupações é a de atirar por terra não só o partido "socialista"
(dito Communista) como todos os partidos.
Não é de partidos
que precizamos. Os partidos são cacos e os cacos só tem uma utilidade:
a de encher as "garys" e ir aterrar a Sapucaia17.
Precizamos é de
"inteiros" e estes só se conseguem com a "organização
syndicalista revolucionaria", que une, que eleva, que constroe.”18
Em
julho de 1924, todo esse afã organizacional foi ceifado pela repressão
que se seguiu à nova revolta dos tenentes, agora em São Paulo. As
sedes sindicais foram invadidas e fechadas, centenas de anarquistas
encarcerados e muitos deles deportados, entre estes Marques da Costa
e Antônio Vaz. Domingos Passos foi um dos primeiros a serem presos
e, após 20 dias de sofrimentos na Polícia Central19,
foi recolhido ao navio-prisão Campos, fundeado na Baía de Guanabara.
Sua permanência por 3 meses na embarcação caracterizou-se por momentos
de profunda privação e constrangimento. Transferido para o navio Comandante
Vasconcellos20, enfrentou mais 22 dias de suplícios
junto a outras centenas de cativos (anarquistas, soldados e sub-oficiais
sediciosos, ladrões, malandros, cáftens, imigrantes pobres e mendigos),
inaugurando em dezembro de 192421 a fase prisional
da Colônia Agrícola de Clevelândia, o “Inferno Verde” do Oiapoque,
no atual Estado do Amapá.
Após
alguns meses nessa “Sibéria Tropical”, onde os maus tratos e as doenças
dizimaram centenas de homens, Domingos Passos conseguiu fugir para
Saint George, na Guiana Francesa. Entretanto, as febres adquiridas
na selva o obrigaram à buscar medicamentos em Caiena, tendo sido acolhido
fraternalmente por um créole, que o ajudou a recuperar as forças22.
Da Guiana, seguiu para Belém do Pará, onde permaneceu por algum tempo
amparado pela solidariedade ativa do proletariado organizado daquela
capital.
Domingos
Passos estava entre os que retornaram ao Distrito Federal após o estado
de sítio imposto por quase todos os quatro anos do governo de Arthur
Bernardes (1923/1926). Ao chegar ao Rio de Janeiro, no início de 1927,
retornou ao ativismo sindical, mesmo sofrendo das seqüelas do impaludismo,
contraído no Oiapoque. Nesse mesmo ano, mudou-se para São Paulo, onde
atuou na reorganização da Federação Operária local (FOSP) e na articulação
do Comitê de Agitação Pró-Liberdade de Sacco e Vanzetti23,
criado no início de 1926, tendo ainda participado do 4o
Congresso Operário do Rio Grande do Sul, realizado em Porto Alegre.
Em
agosto de 1927 foi preso durante um meeting pró-Sacco e Vanzetti
no Largo do Brás, e levado à temida “Bastilha do Cambucí”, onde permaneceu
por 40 dias sujeito à toda sorte de maus tratos. Solto, saiu de São
Paulo em direção ao Sul do país, perseguido em todos os cantos, conseguindo
chegar a Pelotas, onde foi preso e embarcado à força em um navio para
Santos24. Ao chegar nessa cidade, conseguiu fugir
e voltar a São Paulo, vivendo oculto por algum tempo até que, em fevereiro
de 1928, foi preso juntamente com o operário sapateiro Affonso Festa25.
Segundo
Pedro Catallo26, por ordem do delegado Hibraim Nobre,
Passos foi deixado incomunicável por mais de três meses em um cubículo
de 2 m2 da “Bastilha do Cambuci”, escuro e sem janelas,
recebendo alimentação apenas uma vez por dia. Ao ser retirado da cela
imunda, tinha o corpo coberto de feridas e vestia apenas trapos. Foi
embarcado em um trem e enviado para morrer nas matas da região de
Sengés, no interior ainda selvagem do Estado do Paraná. Algum tempo
depois, conseguiu abrigo neste povoado e pôde escrever para os camaradas
de São Paulo solicitando dinheiro, que foi-lhe levado em mãos por
um emissário.
Aí
terminou a trajetória conhecida deste que foi um dos mais influentes
e respeitados ativistas do anarquismo e do sindicalismo revolucionário
de seu tempo. Nunca mais se teve qualquer notícia dele, apenas boatos
esporádicos e nunca confirmados.
Não
foi à toa que Domingos Passos ganhou de seus contemporâneos a alcunha
de “Bakunin Brasileiro”. Poucos como ele se entregaram de tal forma
ao Ideal e sofreram tanto as conseqüências dessa dedicação à luta
pela emancipação dos homens e mulheres. Durante apenas uma década,
em grande parte passada nas prisões e nas selvas tropicais, Passos
tornou-se a grande referência de militância libertária e social de
seu tempo...e do nosso também!
Nossos
passos seguirão os seus, Passos!
Referências
1
A Pátria, Secção Trabalhista, 16/03/1923 (Seção de Periódicos,
Biblioteca Nacional).
2
“Memórias” manuscritas de Pedro Catallo in Edgar Rodrigues. Os
Companheiros 2. VJR Editores Associados Ltda. Rio de Janeiro,
1995.
3
Ibidem.
4
Leal, Juvenal. Histórico da União dos Operários em Construcção
Civil (18 de março de 1917 a 31 de dezembro de 1919). Edição da
União dos Operários em Construcção Civil, 1920. pgs. 10-12 (Acervo
da Biblioteca Social Fábio Luz, também disponível no site www.insurgentes.nodo50.org).
5
Ibidem. pg.. 16
6
Ibidem. pg. 24.
7
Ibidem. pg. 28.
8
Rodrigues, Edgar. Nacionalismo & Cultura Social (1913-1922).
Laemmert, 1972, p.307.
9
Ibidem. p. 314.
10
Rodrigues, Edgar. Os Companheiros 2, p. 26.
11
Rodrigues, Edgar. Nacionalismo & Cultura Social (1913-1922).
p. 335-336.
12
UOCC .Refutando as afirmações mentirozas do Grupo Comunista.
Edição da União dos Operários em Construcção Civil, 1922. (disponível
no site www.insurgentes.nodo50.org).
13
Ibidem.
14
A Pátria, Secção Trabalhista, 08/07/1923.
15
Castro Gomes, Ângela. A Invenção do Trabalhismo. São Paulo:
Vértice; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988, p. 160.
16
A Pátria, Secção Trabalhista, 18/10/1923.
17
A Sapucaia era o depósito de lixo da cidade, situado no bairro
do Caju, às margens da Baía de Guanabara, hoje cortado pela Linha
Vermelha.
18
Passos, Domingos. Em frente - Ao Partido Communista. A Pátria,
Secção Trabalhista, 04/05/1924. (disponível no site www.insurgentes.nodo50.org).
19
A Plebe, 26/02/1927.
20
Samis, Alexandre. Clevelândia: Anarquismo, Sindicalismo e Repressão
Política no Brasil. São Paulo: Ed. Imaginário; Rio de Janeiro:
Achiamé, 2002, p. 194.
21
A Plebe, 12/03/1927.
22
A Plebe, 26/02/1927.
23
Rodrigues, Edgar. Novos Rumos (História do Movimento Operário e
das Lutas Sociais no Brasil, 1922-1946). Rio de Janeiro, Edições
Mundo Livre, 1978.
24
Panfleto “Trabalhadores Conscientes, Procurae saber o paradeiro
de Domingos Passos” (1928). Arquivo Biblioteca Social Fábio Luz.
25
Rodrigues, Edgar. Novos Rumos. op. cit. p. 278.
26
Ibidem, p. 279.
FARJ
Caixa
Postal 14.576; CEP 22412-970; Rio de Janeiro/RJ
farj@riseup.net
Federação
Anarquista do Rio de Janeiro - FARJ, janeiro de 2004