A
Luta Pela Autogestão no Leste Europeu
Maurício
Tragtenberg
Capítulo
de “Reflexões sobre o Socialismo” de Maurício
Tragtenberg – São Paulo, Editora Moderna, 1986, páginas
46 a 50
A Revolução Húngara
Quando
Kruschev subiu à tribuna do XX congresso do Partido Comunsita
da URSS (1956) para denunciar o “culto à personalidade”
de Stálin, não só definiu o fim da era stalinista,
mas também tirou o movimento comunista internacional de seu sono
dogmático. E uma espécie de segunda Revolução
de Outubro abalou os dez anos de estalinismo através da Europa,.
Levando os regimes das “democracias populares” à
hora da verdade.
Stáli
violara a “legalidade revolucionária”, montando,
com provocações e mentiras, processos políticos
inúteis que caluniavam seus adversários. Ele foi o criador
do termo “inimigo do povo”, amplamente utilizado nos processos
de Moscou de 1936-38, quando foram fuzilados os ex-membros do Comitê
Central do PC soviético de 1917, com exceção de
Trotsky, deportado em 1929.
A
Revolução Húngara de 1956 caminhou na mesma trilha
da Oposição Operária na URSS, em 1918, da Rebelião
de Kronstadt e da evolução camponesa autogestionária
na Ucrânia (1918-21). Foi realmente soviética enquanto
entendida como o exercício do poder por mediação
de conselhos livremente eleitos pelos trabalhadores. Criou seus órgãos
revolucionários estruturados horizontalmente (conselhos operários),
comitês urbanos, conselhos de bairros e conselhos profissionais,
Foi a primeira revolução soviética anti-soviética
dirigida contra a burocracia do PC e do Estado.
No
processo da insurreição, os membros do Partido que dela
participavam juntaram-se aos sem-partido; já não havia
organização, pois esta tinha sido implodida pelas massas.
No
plano das empresas, os trabalhadores húngaros reivindicavam
a administração direta da produção por
quem trabalha. No plano sindical, a reivindicação central
era a completa autonomia dos sindicatos em relação ao
Estado e ao Partido, argumentando “ser um absurdo que dezenas
de milhares de trabalhadores sejam submetidos à direção
do Partido se a ele não pertencem” (In Les Temps Modernes:
la révolte de la Hungrie, jan. 1957, p. 777).
Ante
a presença das tropas russas de ocupação, os
trabalhadores mineiros reuniram-se em Budapeste, para expressar sua
desconfiança do governo de János Kádar (imposto
pela URSS) e pedir a volta de Imre Nagy como primeiro-ministro. A
independência do proletariado organizado ante o Partido e o
Estado transformou-se em realidade.
A
liquidação da burocracia planejadora realizou-se quando
os trabalhadores armados apossaram-se das fábricas. Isso levou
o governo Kádar a aceitar o fato consumado: a autogestão
operária das empresas.
Os
diferentes conselhos operários uniram-se em federações
locais, departamentais e nacional, conforme os ramos industriais.
Esses conselhos criticaram duramente a burocracia. Segundo eles, o
poder burocrático, além da força político-militar-policial,
fundava-se também na desconfiança das organizações
de base – o que levava a restrições de sua atividade,
controlada por normas rígidas –, na impossibilidade de
personalidade e de iniciativa desenvolveram-se, na figa das responsabilidades,
na recusa a considera os aspectos locais e específicos dos
problemas, na perdad de contato com o real e no controle total exercido
pelos órgãos superiores.
Qaul
o rsultado dessa estrutura? “Haverá muitas coisas a contar,
diz um operário. Mas o problema central é que há
falta de coragem em fazê-lo. Em Csepel (uma usina metalúrgica)
como em outras fábricas, a atitude dominante dos trabalhadores
rege-se pela filosofia empobrecida segund a qual ‘em boca fechada
não entra mosca’. Tomemos um exemplo da vida quotidiana
na usina. Alguns operários discutem se Imre Nagy (primeiro-ministro
fruto da revolução e deposto pelo exército soviético)
aceitará fazer sua autocrítica, por que Tito viajou
para a Criméia e se os salários serão pontualmente
pagos no dia 1.º do mês. Um rsponsável da organização
de base do PC aproxima-se deles e a conversa muda par tratar de futebol,
do número de jogos programados para a semana” (In Les
Temps Modernes, v. cit, p. 929). Sem dúvida, isso explica muito
do sil6encio e da revolta operária conhecida como Revolução
Húngara.
Com
base num artigo do Pacto de Varsóvia, o Exército Vermelho
invade a Hungria, os líders Nagy e Maleter são assassinados
e János Kádar sai da cadeia para ocupar o cargo de primeiro-ministro.
Atualmente
[Nota: este texto foi escrito em 1986], a Hungria pretende ser competitiva
no mercado mundial capitalista. Para isso, as suas empresas deverão
pagar a energia e as matérias-primas a preços reais,
sem subvenção estatal, o que significa um aumento de
64% no preço do carvão, 22% no preço da eletricidade
e 30% nos preços dos produtos químicos. Para absorver
esses aumentos e vender a preços competitivos no mercado externo,
“as empresas industriais deverão aumentar a produtividade,
reforçar a disciplina nas fábricas, despedir a mào-de-obra
excedente, diferenciar sensivelmente os salários segundo o
rendimento, exigir mais responsabilidade dos gerentes, pagando melhor
os que mostrem mais iniciativa e mantenham o respeito pela ordem e
disciplina” (F. Claudin, A oposição no socialismo
real, Rio de Janeiro, Marco Zero, 1982, p. 182).
O
código trabalhista foi modificado para que essas medidas pudessem
ser aplicadas. Isso foi acompanhado de discursos contra o “igualitarismo”,
conforme o jornal Le Monde de 23 e 24 de março de 1980 (apud
Fernando Claudin, op. cit., p. 182)
O Caso da Tchecoslováquia
A Primavera de Praga, movimento idêntico à Revolução
Húngara, continua com as mesmas reivindicações
desta: liberdade de imprensa e de consciência, reforma econômica
que limite o planejamento centralizado na burocracia de Estado, abolição
da censura e democratização da vida política.
Novotny é substituído por Svoboda na presidência
da República.
De
Moscou, Varsóvia e Berlim Oriental partem críticas ao
“novo rumo” tomado por Praga. Moscou realiza manobras
dos exércitos do Pacto de Varsócia em território
tcheco. O maior temor da URSS era de que o exemplo tcheco contagiasse
a Europa oriental. Daí decidir pela invasão (1968),
apresentada como “normalização”, e destituir
dubcek como secretário-geral do PC tcheco, substituindo-o por
Husák, de confiança dos invasores.
A
situação do cidadão tcheco sob ocupação
soviética é sintetizada numa cartado filósofo Karel
Kosik a Sartre, a qual escreve: “Enquanto filósofo e autor,
sou, na minha pátria, um enterrado vivo; enauqnto cidadão,
fui despojado dos direitos fundamentais e vivo acusado e suspeito permanente”
(F. Claudin, op. cit., p. 213)
Iugoslávia: Uma Autogestão Limitada
Uma experiência alternativa de oposição à
burocracia de Estado, partido e sindicato é a prática
da autogestão iugoslava.
A
autogestão real procura superar a antiomia entre Estado e Sociedade
civil através de uma autogestão generalizada. Nesse
sentido é fundamental que o homem tenha poder sobre o imediato
e sobre a gestão de suas atividades, se bem que a nível
geral ele depende do que ocorre nas outras esferas de atividades humanas.
Daí a importância nacional dos conselhos de trabalhadores.
A
profunda limitação da autogestão iugoslava é
que nas empresas ela é meramente formal, na medida em que,
separados delas, existem o aparelho político e o poder do Estado.
O estado limita a autogestão operária na fábrica
a aspectos secundários, enfatizando especialmente a produtividade,
e a Liga dos Comunistas da Iugoslávia, partido único,
exerce poder sobre os aspectos mais significativos da vida social
e econômica do país e, logicamente, sobre o que ocorre
no interior das unidades fabris.
Pesquisas
recentes [Nota: este texto foi escrito em 1986] têm demonstrado
a participação cada vez maior dos chamados “quadros
técnicos” nos órgãos de autogestão
em detrimento do trabalhador de linha.
É
importante notar que a opção iugoslava pelo socialismo
se realiza por meio de um processo de industrialização,
E, considerando que tal processo tanto no Ocidente quanto no Leste Europeu
está vinculado a uma dimensão repressiva, cabe a pergunta:
Que tipo de vínculo existe na Iugoslávia entre o socialismo
– entendido como a classe operária no poder – e o
processo de industrialização?
Na
Liga dos Comunistas da Iugoslávia, inicialmente, quatro quintos
sos membros eram representados por operários e camponeses.
Em 1957, essa cifra cai para menos da metade e, em 1967, conforme
informes da Liga, o declínio continuou paralelamente ao aumento
donúmero de burocratas.
Isso
se deve ao tipo de recrutamento havido e aos pedidos de demissão
ou exclusão. No ano de 1966, 54% dos demissionários
pertenciam à classe trabalhadorea. Há uma confluência
dos membros da Liga dos Comunistas, que detém o monopólio
do poder político, com a burocracia, formada por intelectuais,
técnicos ou não.
Drulovic,
estudioso da autogestão iugoslava, mostra que idêntico
processo ocorre nas indústrias, onde os trabalhadores qualificados
e os altamente qualificados cada vez mais predominam nos órgãos
“autogestionados”.
Já
os trabalhadores sem qualificação, que, em 1968, consistiam
60% dos conselhos, baixaram para 55% em 1970. Cada vez mais os trabalhadores
vinculados à produção participam menos das decisões
mais amplas das unidades industriais.
Há
uma ampla hegemonia dos administradores profissionais, dos membros da
Liga dos Comunistas e dos trabalhadores altamente qualificados sobre
os trabalhadores, a classe dominada.
A
Liga dos Comunistas exerce sua influência nas unidades industriais
via comuna (unidade municipal com relativa autonomia). Outro canal
de influência da Liga são os sindicatos, que detém
pouca autonomia, uma vez que são subvencionados pelas unidades
industriais.
Até
1950, o presidente Tito manteve um planejamento econômico centralizado
com base no modelo da URSS. Após o rompimento com Stálin,
opta pela economia socialista participativa, rejeitando o modelo russo.
Ao lado da descentralização econômica, vincula
um planejamento e uma relação de mercado.
Apesar
do igualitarismo proclamado na Iuoslávia, existe a diferenciação
enre os que são membros da Liga e os que a ela não pertentem,
A ênfase na produtividade leva a tensões entre os trabalhadores
e a tecnocracia “autogestionária”. E quem acaba
ganhando com isso é a classe média, e quem paga o custo
social da estabilização da classe média é
a classe operária.
A
alta burocracia tem seus privilégios, como pagamento ela “maior
resposabilidade” na manutenção da economia do
Estado. O sistema permite certa ascensão social a alguns trabalhadores,
mas até quando não se sabe, pois há um movimento
de oposição. Os filhso dos privilegiados, embora não
herdem a propriedade, herdam o nvível de vida, o capital cultural
e o capital de relações sociais com a “camada
dominante”.
Em
suma, pode-se tratar de relações capitalistas deprodução
sem modo capitalista de produção, um capitalismo de
Estado apenas mais “civilizado”— em relação
a outros países do Lest Europeu e da URSS.
Mesmo
com as deformações referidas, a reivindicação
autogestionária na Iugoslávia continua a tradição
de lutas dos que se opuseram à burocracia de Estado e ao monopólio
de poder por um partido único, desde 1920 até hoje [Nota:
este texto foi escrito em 1986].
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