Escrevendo sobre
esses imigrantes, Lamenha Lins registra os desmandos então
cometidos: "Amontoados na Vila Palmeira, sem possibilidade de
se mexerem, pois lhes eram negados os meios de locomoção,
os russos se levantaram e exigiram a repatriação, porquanto
as terras que lhes impunham eram imprestáveis e más,
conforme haviam verificado com instrumentos de sondagem e reagentes".
Dirigindo-se
para o local, o imperador ordenou pessoalmente ao seu capitão-comandante
que espetasse sua espada no solo, verificando então tratar-se
efetivamente de terra sáfara e empedrada. Diante dos fatos,
o monarca propôs "alimentar as 928 famílias, tudo
às custas do Tesouro, durante dois meses", período
em que se comprometia a providenciar novas terras para doação,
de comprovada fertilidade, aos que quisessem permanecer no Brasil.
Aos que se recusassem, propunha embarcá-los de volta, por conta
do governo, ao país de origem.
Só 200
famílias permaneceram. A maioria viajou até Hamburgo
e de lá para os Estados Unidos, fundando uma colônia
no Estado de Nevada. Outras preferiram transferir-se para as povoações
de Coronel Suárez, na Argentina.
Dos que ficaram,
alguns foram trabalhar na colônia do Lago de Quero-Quero, entre
Ponta Grossa e Palmeira, enquanto outros se dirigiram para Mariental,
perto da Lapa. Na ocasião, o cultivo da erva-mate exigia a
necessidade de transportá-la para outras regiões, o
que acabou atraindo os imigrantes russos então disponíveis,
que passaram a fazer o transporte pioneiro do mate em carroças
cobertas de toldos de lona.
Deposto, Pedro
II não teve tempo de constatar o fracasso ou o êxito
dos colonos que para cá atraíra, mas como monarca exilado
na Europa certamente deve ter sido informado de que seus sucessores
deram continuidade à sua política de aliciar camponeses.
Por volta de 1909, anúncios republicanos chegavam à
Ucrânia. Já então ninguém se recordava
ali do sofrimento que as primeiras levas de imigrantes tiveram pela
frente ao desembarcar por aqui, em 1878. E novamente acreditaram nas
promessas de uma vida paradisíaca no Brasil. Vinte famílias
de camponeses ucranianos venderam tudo o que tinham e para cá
embarcaram, com escala em Londres. Com eles viajava Elias Iltchenco,
que me narrou pessoalmente as vicissitudes a que ficaria exposto com
os camponeses seus parceiros nesta aventura que a luta pela vida obrigava.
Foi uma demorada
viagem do sul da Rússia ao porto de Santos e deste a São
Paulo. Os agentes republicanos da imigração levaram-nos
para a colônia Paricuera-açu, uma região em tudo
oposta aos padrões de clima e trabalho a que os ucranianos
estavam acostumados. Submetidos a um sofrimento atroz durante dois
anos (miséria, doença, abandono), os imigrantes resolveram
juntar os rublos que lhes restavam para, vendendo tudo o que sobrava,
retornar à sua terra. Do porto de Eguapé, chamaram o
cônsul russo. Queriam a repatriação imediata de
todos, protestando que se sentiam enganados e traídos na sua
boa-fé. E prometiam denunciar à imprensa européia
os maus-tratos que tiveram de suportar.
Um acordo com
as autoridades republicanas, temerosas da repercussão internacional
do caso, propunha-lhes que permanecessem, mediante uma ajuda em dinheiro
e nova oferta de teras, desta feita no Rio Grande do Sul, onde as
condições climáticas se aproximavam mais dos
seus costumes.
Foram então
embarcados num cargueiro para Porto Alegre, onde permaneceram durante
três semanas, amontoados num barracão sem o mínimo
de suprimento e higiene. Levados depois para Erexim, hoje Getúlio
Vargas, aguardaram mais algumas semanas em condições
precárias, até que os burocratas da colonização
procedessem com visível má vontade à esperada
distribuição de terras. Embarcaram com algumas poucas
famílias e demoraram semanas para voltar. Finalmente, apareceram
para buscar as que ficaram, às quais distribuíram um
ou dois lotes de terra de 25 hectares, de acordo como número
de pessoas em condições de trabalhar.
Transportadas
em carroças do exército, as vinte famílias de
ucranianos foram despejadas nas matas de Erebango, sem recursos e
sem mesmo saber como sair de lá.
Nas terras de
Erebango não havia nada além de bosques cortados por
alguns riachos e pequenas planícies sem vegetação.
Com a gleba, cada família recebeu 500 mil-réis em vales,
foices, enxadas, mais um machado e uma serra para cada duas famílias.
A falta de estradas e de transporte obrigava o esforço a pé
para dentro dos matos. Sem comida e casa que os abrigasse das intempéries
e dos ataques dos animais e sem um mínimo de assitência
médica para fazer frente aos mosquitos transmissores de doenças,
os imigrantes ucranianos tiveram ainda uma vez de recomeçar
a luta pela sobrevivência. Elias Iltchenco lembra então
que começava aí uma riquíssima experiência
de apoio mútuo e solidariedade humana entre as famílias
dos trabalhadores. Os mais hábeis cumpriam as mais diversas
tarefas (na agricultura, no ensino, no aconselhamento do grupo, na
assitência aos doentes, no sepultamento dos mortos), sem que
isso significasse ascensão ou domínio sobre os demais.
Cultivava-se
a terra, plantava-se e colhia-se tendo em vista a distribuição
da prosperidade. AS famílias se harmonizavam nos desmatamentos,
na construção dos barracões, na abertura de vias
e caminhos, na troca de sementes e de animais, nos partos, nos acidentes
e nos tempos de seca. Foram três anos (1911-1914) de trabalhos
árduos e de muita fome, período em que a saudade da
Ucrânia muitas vezes fez aflorar a idéia de voltar ao
chão de origem. Mas a terra que deixaram já não
era a mesma, os bolcheviques acabavam de depor o czar e a perseguição
aos anarquistas era cada vez mais ostensiva.
É por
esse tempo que começam a chegar à colônia de Erebango
exemplares do jornal libertário Golos Truda, da Federação
de Trabalhadores Russos, com sede na Argentina, para onde os anarquistas
fugidos e os imigrantes haviam se deslocado, até que, em 1919,
a política portenha os obrigasse a buscar abrigo em Montevidéu.
Nesta última cidade publicaram por algum tempo a folha anarquista
Robotchaia Misl, que deixou de circular logo que retornaram a Buenos
Aires, onde retomaram o Golos Truda, que então reaparece como
órgão da Federação Operária Russa
Sulamericana.
Os camponeses
de Erebango, ajudados pela imprensa libertária, começaram
a aprimorar o senso coletivo de sua vida de trabalho. No campo, aprendiam
uns com os outros. Todos eram a um tempo professores e alunos no cultivo
das terras que iam dominando pouco a pouco. À noite, completavam
à luz de vela o que a filosofia do trabalho coletivo exigia
da consciência comum. Aprendiam e ensinavam português,
espanhol, russo e esperanto, e assim se preparavam para a leitura
dos jornais, revistas e livros anarquistas que a Federação
dos Trabalhadores Russos enviava regularmente da Argentina para o
Sul do país. Mais tarde, ampliando os contatos com a imprensa
internacional, passaram a receber publicações anarquistas
em idioma russo editadas no Canadá e nos Estados Unidos, encarregando-se
de distribuílas aos imigrantes de todo o Brasil. Tanto assim
que se constatou pouco depois, em São Paulo, a presença
de camponeses que traziam livros de Tolstoi e de outros pensadores
revolucionários russos usados em Erebango na alfabetização
dos trabalhadores. Trabalhos de Alexander Berkman, Volin e principalmente
de Emma Goldmann, incluindo exemplares do jornal Mother Earth, mesclavam
também a essa literatura de informação que circulou
pela colônia. Como bons ucranianos, os libertários de
Erebango também lançaram mão dos métodos
revolucionários de Nestor Makno, que tanto êxito tiveram
na Ucrânia antes do massacre bolchevista comandado por Trotski.
Informa-nos Elias
Iltchenco que, a partir de 1918, os imigrantes russos do Sul já
haviam dominado totalmente a terra e desfrutavam de uma situação
econômica e pscicológica que lhes permitia locomover-se
para divulgar em outras regiões os princípios anarquistas.
O grupo a que
pertencia a família de Ilchenco desdobrava-se em quarenta filiados,
que se espalhavam por Floresta, Erexim e Erebango. Sua atividade conjunta
fez surgirem, em 1918, alguns organismos libertários importantes,
como a União dos Trabalhadores Rurais Russos do Brasil, sediada
em Erexim e integrada por quarente militantes, entre os quais se destacavam
seu presidente Sérgio Iltchenco, o secretário Paulo
Uchacoff e o tesoureiro Simão Poluboiarinoff; a União
dos Trabalhadores Russos, com sede em Porto Alegre e presidida por
Nikita Jacobchenco; a União dos Trabalhadores Rurais Russos,
de Guarani, Campinas e Santo Ângelo, dirigida por João
e Gregório Tatarchenco; e a União dos Trabalhadores
Rurais, de Porto Lucena, de cujos dirigentes Ilchenco não recorda
o nome, apesar de se lembrar com emoção de alguns dos
mais expressivos militantes libertários russos no Rio Grande
do Sul. Um deles é Demétrio Cirotenco, reverenciado
ainda hoje como o homem que durante mais de vinte anos serviu de elo
de ligação entre a União dos Trabalhadores de
Erexim e a de Erebango e que durante a vida toda atuou na propaganda,
distribuindo jornais e revistas anarquistas aos trabalhadores russos
radicados no Brasil; o outro é o ucraniano Ossef Stefanovetchi,
que cultivava uma barba à Kropotkin e militava como conferencista,
professor, teatrólogo, jornalista e escritor. O próprio
pai de Iltchenco que, segundo ele, usava o pseudônimo de Nikita
Jacobchencom foi várias vezes secretário da União
dos Trabalhadores Russos.
Ao pai e ao irmão
mais velho Iltchenco confessa que deve o gosto pela leitura que o
iniciou na obra de clássicos como Tolstoi, Pushkin, Tchekhov
e outros. Sem que se desse conta do fato, sua aplicação
intelectual acabou contribuindo para que se convertesse num dos militantes
mais expressivos da comunidade livre de Erebango, a ponto de ser hoje
um elo visível da lição humanitária que
os camponeses russo desenvolveram naquela região. É
sobre a luta para a expansão do movimento libertário
no Sul que ele se reporta com entusiasmo para reviver as etapas vencidas
no trabalho coletivo, da luta pela emancipação de todos,
da conquista da auto-suficiência em alimentos, do aprimoramento
educacional do grupo e da auto-aplicação dos princípios
anarquistas pelos membros da comunidade. E recorda ainda com orgulho
o esforço com que os fundadores da colônia de Erebango
se cotizaram para ajudar, através da Federação
dos Trabalhadores Russos Sul-americana, o jornal Golos Truda.
Por essa época,
os militantes de Erebango pensavam em organizar a Juventude dos Trabalhadores
Rurais Libertários, ao mesmo tempo que tratavam de ampliar
os contatos com as direções internacionais do movimento
anarquista. Dos imigrantes russos da América do Norte recebiam
o diário Amerikanskie Izvestia e a revista Volna. A partir
de 1925 começaram a chegar, de Paris, exemplares da revista
Dielo-Trouda que, de 1930 em diante, se mudaria para Chicago. De Detroit
vinha, a partid de 1927, a revista Probuzhdenie, que em 1940 se associaria
à Dielo-Trouda, formando uma só revista, sob o título
Dielo-Trouda-Probuzhdenie, em circulação até
1963. Em 1922 chega a Erebango a notícia da expulsão
dos anarquistas G. Maximov, P. Archinov, E. Jartchuk e A. Geselik
pelo governo bolchevista e pouco depois a revista por estes publicada
no exílio, Anarquistchesku Rusnik, de oitenta páginas.
De São Paulo e Rio de Janeiro vinham A Voz do Trabalhador,
A Plebe, Ação Direta, o Libertário, O Dealbar
e O Protesto, que se juntariam às publicações
de língua espanhola, incluindo os periódicos como Voluntad,
La Protesta, Tierra y Libertad, Acción Libertaria e El Sol.
Toda essa produção
da imprensa operária acabaria compondo um acervo estimável
a que Iltchenco agregaria livros de Kropotkin, Bakunin, Emma Goldmann,
Tolstoi, Netlau, Malatesta, J. Grave, A. Karelin e N. Makno, em sua
maioria recebidos dos Estados Unidos, Canadá e Argentina. Afinal,
foram mais de cinqüenta anos recebendo e distribuindo a doutrina
anarquista, sobretudo a publicada em língua russa.
Diante desse
material, que me foi doado em 1982, passam ainda os exemplos do grande
libertário de Erebango que permanece fiel à doutrina
até os dias de hoje. A lealdade para com o homem levou-me a
distribuir parte de seus livros para alguns arquivos sociais que reputo
dos mais duradouros. Outros aguardam ainda um próximo destino.
Sua correspondência e memórias, no entanto, permanecerão
comigo.
Elias Iltchenco
não saiu de Erebango. Lá permanece tão revolucionário
quanto o era em 1911, quando chegou. Sua obra anônima vale tanto
ou mais qua a de muitos heróis que a história oficial
nos obriga a decorar nas escolas.
Edgar Rodrigues
/ extraído de ("Libertários no Brasil: Memória,
Lutas, Cultura"Editora
Brasiliense, São Paulo: 1987; Organização de
Antonio Arnoni Prado)