A Comunidade Livre de Erebango

(Imigrantes Libertários Russos no Sul do Brasil)

Durante a monarquia, agenciadores de mão-de-obra publicaram anúncios na Europa propondo vantagens irrecusáveis aos trabalhadores rurais e artífices. Com o aval de Pedro II, a propaganda visava atrair operários qualificados para desbravar e promover o desenvolvimento do Brasil. Ofertavam-se terras e passagens a quem quisesse formar colônias agrícolas em nosso país. Alguns desses jornais chegaram à Rússia, invadiram o reino dos Romanoff, e, em 31 de dezembro de 1878, desembarcavam no Paraná centenas de camponeses vindos da Ucrânia e esperançosos de encontrar o Eldorado brasileiro.

Escrevendo sobre esses imigrantes, Lamenha Lins registra os desmandos então cometidos: "Amontoados na Vila Palmeira, sem possibilidade de se mexerem, pois lhes eram negados os meios de locomoção, os russos se levantaram e exigiram a repatriação, porquanto as terras que lhes impunham eram imprestáveis e más, conforme haviam verificado com instrumentos de sondagem e reagentes".

Dirigindo-se para o local, o imperador ordenou pessoalmente ao seu capitão-comandante que espetasse sua espada no solo, verificando então tratar-se efetivamente de terra sáfara e empedrada. Diante dos fatos, o monarca propôs "alimentar as 928 famílias, tudo às custas do Tesouro, durante dois meses", período em que se comprometia a providenciar novas terras para doação, de comprovada fertilidade, aos que quisessem permanecer no Brasil. Aos que se recusassem, propunha embarcá-los de volta, por conta do governo, ao país de origem.

Só 200 famílias permaneceram. A maioria viajou até Hamburgo e de lá para os Estados Unidos, fundando uma colônia no Estado de Nevada. Outras preferiram transferir-se para as povoações de Coronel Suárez, na Argentina.

Dos que ficaram, alguns foram trabalhar na colônia do Lago de Quero-Quero, entre Ponta Grossa e Palmeira, enquanto outros se dirigiram para Mariental, perto da Lapa. Na ocasião, o cultivo da erva-mate exigia a necessidade de transportá-la para outras regiões, o que acabou atraindo os imigrantes russos então disponíveis, que passaram a fazer o transporte pioneiro do mate em carroças cobertas de toldos de lona.

Deposto, Pedro II não teve tempo de constatar o fracasso ou o êxito dos colonos que para cá atraíra, mas como monarca exilado na Europa certamente deve ter sido informado de que seus sucessores deram continuidade à sua política de aliciar camponeses. Por volta de 1909, anúncios republicanos chegavam à Ucrânia. Já então ninguém se recordava ali do sofrimento que as primeiras levas de imigrantes tiveram pela frente ao desembarcar por aqui, em 1878. E novamente acreditaram nas promessas de uma vida paradisíaca no Brasil. Vinte famílias de camponeses ucranianos venderam tudo o que tinham e para cá embarcaram, com escala em Londres. Com eles viajava Elias Iltchenco, que me narrou pessoalmente as vicissitudes a que ficaria exposto com os camponeses seus parceiros nesta aventura que a luta pela vida obrigava.

Foi uma demorada viagem do sul da Rússia ao porto de Santos e deste a São Paulo. Os agentes republicanos da imigração levaram-nos para a colônia Paricuera-açu, uma região em tudo oposta aos padrões de clima e trabalho a que os ucranianos estavam acostumados. Submetidos a um sofrimento atroz durante dois anos (miséria, doença, abandono), os imigrantes resolveram juntar os rublos que lhes restavam para, vendendo tudo o que sobrava, retornar à sua terra. Do porto de Eguapé, chamaram o cônsul russo. Queriam a repatriação imediata de todos, protestando que se sentiam enganados e traídos na sua boa-fé. E prometiam denunciar à imprensa européia os maus-tratos que tiveram de suportar.

Um acordo com as autoridades republicanas, temerosas da repercussão internacional do caso, propunha-lhes que permanecessem, mediante uma ajuda em dinheiro e nova oferta de teras, desta feita no Rio Grande do Sul, onde as condições climáticas se aproximavam mais dos seus costumes.

Foram então embarcados num cargueiro para Porto Alegre, onde permaneceram durante três semanas, amontoados num barracão sem o mínimo de suprimento e higiene. Levados depois para Erexim, hoje Getúlio Vargas, aguardaram mais algumas semanas em condições precárias, até que os burocratas da colonização procedessem com visível má vontade à esperada distribuição de terras. Embarcaram com algumas poucas famílias e demoraram semanas para voltar. Finalmente, apareceram para buscar as que ficaram, às quais distribuíram um ou dois lotes de terra de 25 hectares, de acordo como número de pessoas em condições de trabalhar.

Transportadas em carroças do exército, as vinte famílias de ucranianos foram despejadas nas matas de Erebango, sem recursos e sem mesmo saber como sair de lá.

Nas terras de Erebango não havia nada além de bosques cortados por alguns riachos e pequenas planícies sem vegetação. Com a gleba, cada família recebeu 500 mil-réis em vales, foices, enxadas, mais um machado e uma serra para cada duas famílias. A falta de estradas e de transporte obrigava o esforço a pé para dentro dos matos. Sem comida e casa que os abrigasse das intempéries e dos ataques dos animais e sem um mínimo de assitência médica para fazer frente aos mosquitos transmissores de doenças, os imigrantes ucranianos tiveram ainda uma vez de recomeçar a luta pela sobrevivência. Elias Iltchenco lembra então que começava aí uma riquíssima experiência de apoio mútuo e solidariedade humana entre as famílias dos trabalhadores. Os mais hábeis cumpriam as mais diversas tarefas (na agricultura, no ensino, no aconselhamento do grupo, na assitência aos doentes, no sepultamento dos mortos), sem que isso significasse ascensão ou domínio sobre os demais.

Cultivava-se a terra, plantava-se e colhia-se tendo em vista a distribuição da prosperidade. AS famílias se harmonizavam nos desmatamentos, na construção dos barracões, na abertura de vias e caminhos, na troca de sementes e de animais, nos partos, nos acidentes e nos tempos de seca. Foram três anos (1911-1914) de trabalhos árduos e de muita fome, período em que a saudade da Ucrânia muitas vezes fez aflorar a idéia de voltar ao chão de origem. Mas a terra que deixaram já não era a mesma, os bolcheviques acabavam de depor o czar e a perseguição aos anarquistas era cada vez mais ostensiva.

É por esse tempo que começam a chegar à colônia de Erebango exemplares do jornal libertário Golos Truda, da Federação de Trabalhadores Russos, com sede na Argentina, para onde os anarquistas fugidos e os imigrantes haviam se deslocado, até que, em 1919, a política portenha os obrigasse a buscar abrigo em Montevidéu. Nesta última cidade publicaram por algum tempo a folha anarquista Robotchaia Misl, que deixou de circular logo que retornaram a Buenos Aires, onde retomaram o Golos Truda, que então reaparece como órgão da Federação Operária Russa Sulamericana.

Os camponeses de Erebango, ajudados pela imprensa libertária, começaram a aprimorar o senso coletivo de sua vida de trabalho. No campo, aprendiam uns com os outros. Todos eram a um tempo professores e alunos no cultivo das terras que iam dominando pouco a pouco. À noite, completavam à luz de vela o que a filosofia do trabalho coletivo exigia da consciência comum. Aprendiam e ensinavam português, espanhol, russo e esperanto, e assim se preparavam para a leitura dos jornais, revistas e livros anarquistas que a Federação dos Trabalhadores Russos enviava regularmente da Argentina para o Sul do país. Mais tarde, ampliando os contatos com a imprensa internacional, passaram a receber publicações anarquistas em idioma russo editadas no Canadá e nos Estados Unidos, encarregando-se de distribuílas aos imigrantes de todo o Brasil. Tanto assim que se constatou pouco depois, em São Paulo, a presença de camponeses que traziam livros de Tolstoi e de outros pensadores revolucionários russos usados em Erebango na alfabetização dos trabalhadores. Trabalhos de Alexander Berkman, Volin e principalmente de Emma Goldmann, incluindo exemplares do jornal Mother Earth, mesclavam também a essa literatura de informação que circulou pela colônia. Como bons ucranianos, os libertários de Erebango também lançaram mão dos métodos revolucionários de Nestor Makno, que tanto êxito tiveram na Ucrânia antes do massacre bolchevista comandado por Trotski.

Informa-nos Elias Iltchenco que, a partir de 1918, os imigrantes russos do Sul já haviam dominado totalmente a terra e desfrutavam de uma situação econômica e pscicológica que lhes permitia locomover-se para divulgar em outras regiões os princípios anarquistas.

O grupo a que pertencia a família de Ilchenco desdobrava-se em quarenta filiados, que se espalhavam por Floresta, Erexim e Erebango. Sua atividade conjunta fez surgirem, em 1918, alguns organismos libertários importantes, como a União dos Trabalhadores Rurais Russos do Brasil, sediada em Erexim e integrada por quarente militantes, entre os quais se destacavam seu presidente Sérgio Iltchenco, o secretário Paulo Uchacoff e o tesoureiro Simão Poluboiarinoff; a União dos Trabalhadores Russos, com sede em Porto Alegre e presidida por Nikita Jacobchenco; a União dos Trabalhadores Rurais Russos, de Guarani, Campinas e Santo Ângelo, dirigida por João e Gregório Tatarchenco; e a União dos Trabalhadores Rurais, de Porto Lucena, de cujos dirigentes Ilchenco não recorda o nome, apesar de se lembrar com emoção de alguns dos mais expressivos militantes libertários russos no Rio Grande do Sul. Um deles é Demétrio Cirotenco, reverenciado ainda hoje como o homem que durante mais de vinte anos serviu de elo de ligação entre a União dos Trabalhadores de Erexim e a de Erebango e que durante a vida toda atuou na propaganda, distribuindo jornais e revistas anarquistas aos trabalhadores russos radicados no Brasil; o outro é o ucraniano Ossef Stefanovetchi, que cultivava uma barba à Kropotkin e militava como conferencista, professor, teatrólogo, jornalista e escritor. O próprio pai de Iltchenco que, segundo ele, usava o pseudônimo de Nikita Jacobchencom foi várias vezes secretário da União dos Trabalhadores Russos.

Ao pai e ao irmão mais velho Iltchenco confessa que deve o gosto pela leitura que o iniciou na obra de clássicos como Tolstoi, Pushkin, Tchekhov e outros. Sem que se desse conta do fato, sua aplicação intelectual acabou contribuindo para que se convertesse num dos militantes mais expressivos da comunidade livre de Erebango, a ponto de ser hoje um elo visível da lição humanitária que os camponeses russo desenvolveram naquela região. É sobre a luta para a expansão do movimento libertário no Sul que ele se reporta com entusiasmo para reviver as etapas vencidas no trabalho coletivo, da luta pela emancipação de todos, da conquista da auto-suficiência em alimentos, do aprimoramento educacional do grupo e da auto-aplicação dos princípios anarquistas pelos membros da comunidade. E recorda ainda com orgulho o esforço com que os fundadores da colônia de Erebango se cotizaram para ajudar, através da Federação dos Trabalhadores Russos Sul-americana, o jornal Golos Truda.

Por essa época, os militantes de Erebango pensavam em organizar a Juventude dos Trabalhadores Rurais Libertários, ao mesmo tempo que tratavam de ampliar os contatos com as direções internacionais do movimento anarquista. Dos imigrantes russos da América do Norte recebiam o diário Amerikanskie Izvestia e a revista Volna. A partir de 1925 começaram a chegar, de Paris, exemplares da revista Dielo-Trouda que, de 1930 em diante, se mudaria para Chicago. De Detroit vinha, a partid de 1927, a revista Probuzhdenie, que em 1940 se associaria à Dielo-Trouda, formando uma só revista, sob o título Dielo-Trouda-Probuzhdenie, em circulação até 1963. Em 1922 chega a Erebango a notícia da expulsão dos anarquistas G. Maximov, P. Archinov, E. Jartchuk e A. Geselik pelo governo bolchevista e pouco depois a revista por estes publicada no exílio, Anarquistchesku Rusnik, de oitenta páginas. De São Paulo e Rio de Janeiro vinham A Voz do Trabalhador, A Plebe, Ação Direta, o Libertário, O Dealbar e O Protesto, que se juntariam às publicações de língua espanhola, incluindo os periódicos como Voluntad, La Protesta, Tierra y Libertad, Acción Libertaria e El Sol.

Toda essa produção da imprensa operária acabaria compondo um acervo estimável a que Iltchenco agregaria livros de Kropotkin, Bakunin, Emma Goldmann, Tolstoi, Netlau, Malatesta, J. Grave, A. Karelin e N. Makno, em sua maioria recebidos dos Estados Unidos, Canadá e Argentina. Afinal, foram mais de cinqüenta anos recebendo e distribuindo a doutrina anarquista, sobretudo a publicada em língua russa.

Diante desse material, que me foi doado em 1982, passam ainda os exemplos do grande libertário de Erebango que permanece fiel à doutrina até os dias de hoje. A lealdade para com o homem levou-me a distribuir parte de seus livros para alguns arquivos sociais que reputo dos mais duradouros. Outros aguardam ainda um próximo destino. Sua correspondência e memórias, no entanto, permanecerão comigo.

Elias Iltchenco não saiu de Erebango. Lá permanece tão revolucionário quanto o era em 1911, quando chegou. Sua obra anônima vale tanto ou mais qua a de muitos heróis que a história oficial nos obriga a decorar nas escolas.

Edgar Rodrigues / extraído de ("Libertários no Brasil: Memória, Lutas, Cultura"Editora Brasiliense, São Paulo: 1987; Organização de Antonio Arnoni Prado)

Coletivo Otite