"Enquanto
as ideologias do poder procuram ocultar as múltiplas alienações
do homem moderno, a proposta autogestionária surge como denúncia,
como possibilidade real e radical de transformação social".
- Fernando Prestes Mota, Burocracia e Autogestão.
Para
entendermos o Capitalismo e o Estado com suas instituições
burocráticas, não basta analisá-lo enquanto modo
de produção, temos de o reconhecer também como
uma forma histórica e particular de heterogestão social.
Clarificar
este ponto é determinante para os movimentos sociais, principalmente
para aqueles que pretendem preservar o desafio da mudança,
em tempos que a ideologia dominante pretende nos convencer de um novo
determinismo histórico, que se traduz num dogma teológico:
o da eternidade do capitalismo e do estado.
O
Capitalismo é um modo de produção histórico
que conseguiu integrar à sua lógica todas as instituições
sociais, e a seus valores todas as diferentes culturas num processo
de homogeneização sem precedentes.
Se
é verdade que não foi ele que inventou os mecanismos
de exploração e dominação, não
é menos certo que acentuando e cindindo irreversivelmente os
papeis sociais, unidimensionalizando e empobrecendo a existência
do produtor já vítima de mecanismos econômicos
de expropriação, o capitalismo manifesta toda a negatividade
tanto da exploração, quanto da dominação
política e cultural, que se traduz na crescente alienação
dos seres humanos.
As
formas de administração capitalista contemporânea
se caracteriza hoje, pelo seu caracter burocrático e heterogestionário,
onde os trabalhadores e mesmos os intelectuais e os especialistas
do irrisório, perdem o controle sobre a produção
e gestão do todo. Da mesma forma, o chamado Estado de Direito
acaba usurpando para si, ou seja para a sua burocracia e seus especialistas
da representação, todo o papel decisório, sendo
os cidadãos meros espectadores que são chamados a sufragar
essas elites.
Isto
não quer dizer que as elites dominantes não necessitem
de nos chamar a "participar". Certas formas de "manegement"
contemporâneas tem como ponto central as virtudes da participação,
cooperação e iniciativa dos trabalhadores travestidos
de "colaboradores". Dos EUA e Japão ao Brasil à
gente, "especialista", ganhando dinheiro com o tema. Abolir
a conflitualidade social, principalmente no aparelho produtivo, através
dum corporativismo ou do paternalismo feudal é a modernidade
capitalista. Que se espelha naquele projeto carcerário já
implantado em alguns países de colocar as prisões em
autogestão: os presos se vigiando!
Só
que a autogestão nada tem a ver com esta caricatura. Os valores
da autonomia, auto-organização, cooperação,
solidariedade e apoio mútuo foram historicamente valores opostos
aos do capitalismo, e se manifestaram no movimento socialista principalmente
na corrente auto-gestionária. O conceito de autogestão,
embora recente, traduz um outro que era central para o socialismo
libertário, o de autogoverno, ou seja de que todos nós
seja enquanto cidadãos ou trabalhadores podemos dispensar a
burocracia e o estado na gestão social. Este foi um ponto central
para o movimento social durante as experiências socialistas
desde a Comuna de Paris, passando pela Revolução Soviética
e Revolução Espanhola. Mas aí não era
uma técnica que visava aumentar os lucros privados advindos
duma forma de administração mais inteligente, que não
pretende mais alinhar estupidamente os trabalhadores em linhas de
produção à maneira de Henry Ford, até
porque a automação e a robótica estão
liquidando de vez a necessidade das "máquinas" humanos.
A
divisão social do Trabalho - e a partidocracia representativa
- exige a ilusória participação de todos, principalmente
dos de baixo, para obter dois resultados: uma crescente produtividade
e legitimidade, combatendo o desinteresse, que é uma manifestação
socialmente perigosa. Basta olhar o que acontece com o absentismo,
baixa produtividade, stress e sabotagem em muitas linhas de montagem
industrial. No campo político basta imaginar as conseqüências
de os dirigentes políticos se elegerem com 20%, 10%, 5% dos
votos. Como legitimar seus discursos e suas políticas?
Nos
movimentos sociais, como contraponto ao Estado e ás formas
de organização hierarquizadas e autoritárias,
foi-se definindo um modelo de organização assente em
práticas coletivas e igualitárias e em relações
de solidariedade e cooperação voluntária, em
resumo autogestionário, constituído por grupos auto-administrados,
cooperantes e onde a hierarquização e dominação
não tivessem mais lugar.
Certamente
que essas formas de organização voluntária e
não hierarquizada exigem um empenhamento pessoal, uma participação
e uma consciência, ao contrário das formas de organização
hierarquizadas que recorrem á coerção, chantagem
e recompensa. Por essa razão é evidente mais difícil
e mais demorada a criação e desenvolvimento de formas
de organização cooperativas, até porque a resistência
à inovação, a introjeção dos valores
dominantes e a rotina tende a nos afastar de formas de organização
que implicam um trabalho árduo e permanente de inovação
e participação. Mas será então que a autogestão
- e mais ainda a autogestão generalizada - é uma possibilidade
histórica?
Os
anarquistas dirão que sim otimisticamente, já que a
exploração e a dominação, com a conseqüente
miséria e alienação, produzem resistências
e imaginários que substanciam o desejo de outra sociedade que
seja a imagem de outras formas de organização e de relação
entre os seres humanos.
Certamente
que o caminho dessa alternativa social não é tão
curto e linear quanto alguns pensavam - os defensores do marxismo-leninismo,
-, até porque a história nos mostra quanto o fenômeno
da subordinação e alienação está
interiorizado em todas as classes e grupos sociais, mais ainda na
nossa sociedade massificada e paralisada pela ideologia do consumo
e do espetáculo.
O
antagonismo competitivo tem raízes culturais -e á quem
diga biológicas- profundas e tem como conseqüência
nas suas formas mais violentas a exploração, a morte,
a guerra e a alienação, mas como bem demonstrou Pedro
Kropotkin em seu livro Apoio Mútuo, mesmo no mundo animal um
dos fatores decisivos da evolução das espécies
foi a cooperação, entre os seus membros
Do
ponto de vista filosófico e político , a questão
está em saber até que ponto as sociedades humanas são
capazes de levar o seu processo de aprendizagem histórico e
de recriação das formas de organização
social ; ou se a força conservadora da inércia misturada
com as teias autoritárias do poder, podem hibernar a criatividade
e insatisfação humana que percorre a história.
O
caminho da liberdade, é o caminho de superação
da dependência absoluta da natureza e do outro, em resumo de
construção da autonomia, e esse caminho que os grupos
sociais e os indivíduos buscam através da história,
exige o fim das amarras da exploração, da dominação
e da alienação, potenciando uma relação
autêntica e profunda entre o indivíduo e os que o rodeiam,
a reciprocidade entre os homens como falava Buber.
É
esse o debate que continua a se impor aos movimentos sociais, se não
quiserem se perder no caminho das facilidades com que o sistema sempre
acenou, no passado ao sindicalismo, hoje aos novos movimentos sociais,
tornando-os na maioria dos casos, meros usufrutuários da exploração
e dominação que antes condenavam. Esse caminho recebeu
o nome de pragmatismo, mas melhor pode ser avaliado pelas suas lideranças,
sedes, e pelas ações que possuem nas bolsas de valores.
Um
sindicalismo burocrático, reprodutor de formas heterônomas
de organização e que se baseia da existência de
um grupo de dirigentes inamovíveis, que são especialistas
da representação do mundo do trabalho, concordando dessa
forma com os gestores de todas as instituições da sociedade
capitalista na defesa da "necessidade" da delegação
e da "inevitabilidade" da burocratização das
organizações.
O
sindicalismo autônomo - autônomo em relação
ao Estado e ao Capital - e a livre associação por afinidade
é ainda um dos principais instrumentos possíveis para
a mudança social. Só que essa concepção
de sindicalismo não passa pela mera opção por
alguns vagos princípios teóricos, mas impõe outras
formas de associação que apontam desde já a um
modelo igualitário, autônomo e auto-organizativo, um
micro-modelo do que seria o nosso projeto para a sociedade global.
Um
modelo de participação direta, e interativa ( onde a
delegação seja feita tendo em vista tarefas determinadas
e durante prazos limitados, respondendo permanentemente os delegados
perante as assembléias e podendo ser revogados a qualquer momento)
que recuse a burocratização e esclerose administrativa
dos sindicatos e movimentos sociais, contribuindo para o enriquecimento
cultural e social dos trabalhadores, criando uma cultura alternativa
e de resistência pilar das novas relações sociais,
condição prévia para a recriação
das formas de organização social.
Esse
foi o caminho que começou a ser percorrido pelo sindicalismo
revolucionário e anarco-sindicalismo, interrompido tragicamente
pela convergência de forças negativas no começo
do século: o leninismo, o nazi-fascismo e no caso do Brasil,
o autoritarismo de Vargas nos anos 30.
Com
a derrocada do Capitalismo de Estado na Europa do Leste e com o Capitalismo
atravessando uma crise profunda, está na hora de recomeçar
com lucidez e esperança a percorrer o que Martin Buber chamava
caminhos da utopia, que levam à autogestão generalizada.