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Reflexões sobre o socialismo

Paul Singer

 

1.  A utopia

 

O socialismo é uma utopia no sentido estrito do termo: uma visão de sociedade que, atualmente, não existe ainda em lugar algum. Mas, ele não é fruto da imaginação de alguém (como as ‘utopias’ clássicas), mas das lutas de movimentos sociais e partidos políticos, ao longo dos últimos dois séculos, pelo menos. Neste sentido, trata-se duma utopia em construção, um alvo unificador de inúmeras lutas que poderíamos chamar de libertadoras ou emancipadoras.

 

O socialismo pode ser resumido como uma sociedade em que reina plena igualdade e liberdade para todos seus membros. Uma sociedade democrática, em que o sufrágio é universal, o governo é representativo e os cidadãos tem os mesmos direitos e deveres e o mesmo acesso aos meios de produção. Em termos políticos, algo como as democracias modernas, em que a participação indireta e direta dos cidadãos nas decisões do poder está em permanente construção. Em termos econômicos, uma sociedade em que os produtores têm plena possibilidade de se associar de forma tão igualitária quanto o desejarem.

 

O que os socialistas desejam obviamente é uma sociedade em que não haja empregadores e empregados, em que os meios de produção não sejam propriedade privada duma pequena minoria dos cidadãos, enquanto a grande maioria está privada deles e por isso depende dos seus detentores para sobreviver. Mas, as experiências do socialismo ‘real’ tentaram impor uma única modalidade de relação social de produção - o emprego em empreendimentos possuídos pelo estado – proibindo todas as demais. Desta maneira, uma das liberdades fundamentais do homem, a da livre associação, fora abolida em nome da necessidade de se impedir que alguns assalariem outros.

 

Esta é uma questão crucial. O socialismo só será autenticamente democrático se for o desejo de todos membros da sociedade. Ele não pode ser imposto pela força ou por lei, mesmo se a maioria quiser que o socialismo prevaleça. Assim como, no capitalismo, nada impede que cidadãos se unam para cooperar de forma igualitária no campo econômico, é essencial que no socialismo esta liberdade seja respeitada. Isso por muitas razões, sendo talvez a mais importante de que a chamada livre associação dos produtores (um sinônimo de socialismo) ainda está em experimentação, assumindo atualmente diversas formas. Impedir que no socialismo este contínuo experimentar possa se praticar livremente seria o equivalente a privar a organização das atividades econômicas de qualquer progresso. Seria escolher uma única forma de economia solidária (o socialismo no plano micro-social) enquanto as forças produtivas evoluem e por força de sua mudança certamente requererão mudanças também no terreno das relações sociais de produção. [1]

 

Socialismo, portanto, significa uma economia organizada de tal modo que qualquer pessoa ou grupo de pessoas tenha acesso a crédito para adquirir os meios de produção de que necessitam para desenvolver atividades de sua escolha. Isso implica, evidentemente, na eliminação da pobreza, da exclusão social e, portanto, da necessidade das pessoas de acharem um emprego para ganhar a vida. Em princípio, ninguém será coagido a se tornar assalariado, pois todos terão a possibilidade de trabalhar por conta própria, em associação ou isoladamente.

 

Mas, este direito à autonomia terá necessariamente por contrapartida a necessidade de cada produtor, individual ou coletivo, de encontrar quem compre sua produção e se disponha a pagar por ela um preço que supere os custos, o excedente sendo suficiente para permitir aos produtores um padrão de vida decente. A economia socialista será, portanto, de mercado, mas não de livre mercado. O estado terá de intervir no funcionamento do mercado tendo em vista redistribuir renda, tirando dos que ganham mais e proporcionando a todos uma renda cidadã, que garanta que ninguém seja privado do consumo de bens e serviços considerados essenciais.

 

Considerando a economia que conhecemos hoje, parece indispensável a preservação de mecanismos de mercado para a distribuição de bens e serviços[2], exceto os de caráter público, como saneamento, comunicações, assistência à saúde, educação etc.. O que significa que os produtores terão a responsabilidade pela boa qualidade e baixo preço das mercadorias que ofertam no mercado. Se forem superados pelos concorrentes, terão de recomeçar, possivelmente associados a coletivos melhor qualificados.

 

Nestas condições, é bem possível que parte dos trabalhadores prefira o status de assalariado, em vez de correr o risco da competição. Se houver, por outro lado, pessoas que queiram assumir tais responsabilidades, sem compartilha-las com os que trabalham com eles, é possível que formas capitalistas sobrevivam sob o socialismo. A história das transições entre sistemas sócio-econômicos nos ensina que esta possibilidade é muito provável. A liberdade de escolha entre socialismo e capitalismo será fundamental para garantir que a opção pelo socialismo seja realmente livre e não uma imposição por falta de alternativas.


2. As vias para o socialismo

 

A visão de socialismo, apresentada aqui, decorre de valores, sustentados por socialistas desde sempre, e das lições que nos oferecem dois séculos de lutas e tentativas de alcançar o socialismo. Sua premissa básica é que ela é histórica e está sujeita a mudanças, à medida que a evolução do próprio capitalismo altera as condições concretas, sobre as quais o socialismo terá de começar a ser edificado. A formulação clássica desta premissa é que o capitalismo terá que ser aufgehoben, ou seja, superado mas seletivamente incorporado pelo novo modo de produção. A tecnologia disponível no socialismo, por exemplo, dependerá, ao menos por algum tempo, do horizonte de conhecimentos herdado do capitalismo.

 

Acontece que a luta pelo socialismo produz resultados que modificam o próprio capitalismo. No campo político, a principal conquista socialista é a democracia, que de formas variadas, é praticada (pela primeira vez na história) na maioria dos países. A prática da democracia permitiu a institucionalização dos movimentos operário e camponês e de libertação da mulher, das raças oprimidas e dos grupos discriminados. Através dela conseguiu-se instituir uma série de direitos sociais, inclusive o de organização sindical e de greve, e de sistemas de seguridade social, que hoje em dia são alvo de ofensivas neo-liberais.

 

Algumas conquistas vem sendo perdidas. No terreno da macroeconomia, a preservação do pleno emprego nas economias industrializadas foi abandonada e em conseqüência ressurgiu o desemprego em massa, que ameaça hoje a existência dos sindicatos operários e muitas de suas conquistas. No caso da Revolução de Outubro e das revoluções que seguiram sua esteira, o socialismo registrou importantes vitórias em todos os continentes, que se revelaram algumas décadas depois como derrotas. O sistema sócio-econômico criado por estas revoluções revelou-se econômica, social e politicamente inferior ao capitalismo e por isso foi abandonado pelos países que o haviam adotado. Esta inferioridade do socialismo ‘real’ face ao capitalismo é comprovada pelo fato de que o seu abandono se deu voluntariamente, sem interferência direta das potências capitalistas.

 

Por outro lado, a onda neo-liberal atingiu em cheio os partidos socialistas, trabalhistas e social-democratas, que pressionados pela opinião pública, aderiram a ela. Incapazes de se opor à globalização, que permite aos capitais se deslocar para os países de mão-de-obra barata, os governos destes partidos acabam por sucumbir às suas exigências para investir no próprio país, implementando ‘reformas’ que prejudicam os trabalhadores. As lutas do movimento operário hoje são apenas de defesa de conquistas em perigo de serem revogadas ou enfraquecidas, sem qualquer perspectiva de avanço por mais igualdade, a partir da ação do estado.

 

Nestas condições torna-se imperativo rever as noções até agora prevalecentes sobre como chegar ao socialismo. A partir da vitória do marxismo na II Internacional, tornou-se consensual que estas vias teriam de passar necessariamente pela conquista do poder do estado, tendo em vista mudanças institucionais que levassem à ‘socialização dos meios de produção’. O que dividia os socialistas era apenas se a conquista teria de se dar necessariamente pela força ou se poderia ser realizada também pelo voto. Comunistas e social-democratas divergiam a respeito da forma da tomada do poder mas não sobre a essencialidade desta para atingir o socialismo.

 

Havia nesta opção estratégica um elemento de autoritarismo, na medida em que a ação de uns poucos, no poder, substitui a ação dos próprios trabalhadores, cujo papel passa a ser apenas o de propiciar a tomada do poder. Um vez esta consumada, os trabalhadores teriam apenas de assistir a transferência da posse dos meios de produção a eles. O que de fato nunca ocorreu. Tanto nos países em que comunistas tomaram o poder como nos países em que social-democratas chegaram ao governo, os meios de produção expropriados foram entregues a administradores profissionais, dependentes e obedientes ao poder que os nomeou.

 

A autogestão chegou a ser cogitada em diferentes ocasiões, mas foi descartada com a alegação que faltavam aos trabalhadores conhecimentos e experiência para poder se encarregar da gestão dos empreendimentos. Como a autogestão era um aspecto essencial da utopia socialista, a sua negação deve ter sido justificada como provisória. Mas, passo algum foi dado no sentido preparar os trabalhadores para exercê-la, com a notória exceção da Yugoslávia.

 

A experiência comandada por Tito foi bastante estudada e discutida e dela se tiraram ensinamentos. Mas, a ditadura imperante no país viciou a experiência, na medida em que os empreendimentos autogestionários não tinham autonomia face ao planejamento da economia e tão pouco face ao partido único. A principal lição a tirar da experiência autogestionária yugoslava é que o socialismo, para ser autêntico, tem de estar inserido numa democracia política plena, com crescente participação direta dos cidadãos nas decisões de governo.

 

A via que hoje se abre aos trabalhadores para alcançar (na realidade, para construir) o socialismo é a ação direta dos mesmos, no terreno econômico e social. O capitalismo é um modo de produção que não tem qualquer vocação para empregar a totalidade da força de trabalho disponível para ele. As empresas capitalistas descartam não só os tidos como incompetentes, mas todos que por razões de gênero, idade, escolaridade etc., são, a seus olhos, indesejáveis. Resulta daí, como traço estrutural do capitalismo, a ociosidade e o empobrecimento de grande parte da população economicamente ativa, seja na forma de desemprego crônico, seja na de exclusão social.

 

Ora, toda esta gente está em princípio disponível para se inserir na economia como autônomos, membros de empreendimentos familiares ou sócios de coletivos de produção e distribuição de diferentes espécies. Conseqüentemente, a ação direta dos trabalhadores na construção, no seio do capitalismo, duma economia  solidária, vem acontecendo praticamente desde os primórdios do capitalismo industrial. Cooperativas de diferentes espécies vem sendo criadas e operadas há mais de 200 anos e os princípios que as regem, pelo menos desde a formação dos Pioneiros Eqüitativos de Rochdale, em 1844, são explicitamente socialistas: todo poder de decisão pertence aos sócios por igual – cada cabeça um voto; é livre a entrada de novos sócios em qualquer cooperativa, o que significa que ela não está a serviço apenas de seus sócios (como proclama erroneamente a Lei 5764/71 que regula o cooperativismo no Brasil) mas de todos que queiram e precisem integrar-se à economia solidária; o patrimônio da cooperativa se divide entre fundos divisíveis, pertencentes aos sócios, e fundos indivisíveis, que pertencem à cooperativa enquanto instituição, mas não às pessoas que compõem o seu quadro social a cada momento. Cada um destes princípios contraria frontalmente os que regem o funcionamento da empresa capitalista.

 

A ação direta dos trabalhadores não se limita às cooperativas de produção; ela se estende às finanças, à educação, à pesquisa científica, às comunicações etc., tendendo a abranger todos os campos de atividade. Não há nada que não possa ser feito de forma coletiva e autogestionária. Os produtores individuais e familiares estão descobrindo que também eles podem se unir e ajudar mutuamente, em cooperativas ou associações, o que lhes permite resistir à propensão do capital altamente centralizado de dominar os mercados.

 

Além disso, detentores de saberes e habilidades que carecem de compradores dos bens e serviços que podem ofertar, juntam-se em clubes de troca, concedendo-se crédito reciprocamente mediante a adoção duma moeda social. Surge assim, um sistema de trocas monetárias, do qual os juros estão banidos, e que serve de base para a construção de comunidades autogovernadas. A moeda, como instituição social, recupera a função de laço social e liberta, até certo ponto, os membros dos clubes de troca da dependência da política monetária – freqüentemente restritiva – dos guardiões da moeda oficial.

 

Finalmente, é preciso tomar conhecimento que a economia solidária esteve dormente durante a longa hegemonia do keynesianismo. As cooperativas não deixaram de crescer e se multiplicar, mas premidas pela competição capitalista, foram se equiparando à mesma: profissionalizando suas direções, assalariando os trabalhadores das cooperativas de serviços aos membros, como as de consumo, de habitação, de compras e vendas etc.. A reviravolta neo-liberal e a queda dos regimes stalinistas na Europa Oriental levou a esquerda a rever suas opções estratégicas, em maior ou menor grau na maioria dos países e um dos resultados deste processo foi a atribuição de cada vez mais importância à ação direta dos movimentos sociais e ONGs, tanto na economia quanto na luta ambiental.

 

Nota-se um nítido renascimento da economia solidária e economia ecológica, com viés declaradamente socialista, sobretudo em países da América Latina e em Quebec, mas também na Europa Ocidental e na Ásia. Estas novas formas de luta pelo socialismo, embora voltadas prioritariamente à construção de implantes socialistas e ecológicos na economia, não dispensam a luta no campo político e ideológico. No Brasil, governos municipais e estaduais de esquerda desenvolvem políticas de apoio à economia solidária e o governo federal dá passos no mesmo sentido ao criar, no Ministério do Trabalho a Secretaria Nacional de Economia Solidária e o Programa Nacional de Micro Crédito Produtivo Orientado.

A novidade está na inversão de prioridades. Agora a luta pelo poder político está subordinada às necessidade de construção e consolidação daqueles implantes e os protagonistas da libertação do trabalho do jugo do capital terão de ser os próprios trabalhadores. 

 


Notas

[1] É o que estamos assistindo hoje com a revolução micro-eletrônica. Empresas centralizadas estão sendo desmembradas, o poder da administração está sendo descentralizado, numerosas tarefas são hoje executadas sem que os participantes precisem estar em contato pessoas (presencial) etc.. Não por acaso, o socialismo real mostrou-se incapaz de absorver esta revolução.

 

[2] Há um debate entre os socialistas que acreditam que através de mercados controlados pelo poder público os ideais democráticos de igualdade social e econômica podem ser realizados e os que acham que só o podem ser  por meio dum planejamento democrático (em contraste com o praticado no socialismo ‘real’). O fulcro da questão gira ao redor da viabilidade prática dum planejamento em plano nacional que tome por base os desejos expressos e muito variáveis no tempo de produtores e consumidores. Acho esta viabilidade no mínimo improvável, ao menos enquanto produtores e consumidores se comportarem como o fazem atualmente. É claro que sempre podemos supor que as pessoas, no socialismo, serão mais desprendidas e menos competitivas, mas com esta suposição o socialismo se tornaria mero fruto da imaginação, sem tomar em consideração a humanidade como ela é aqui e agora. O socialismo pelo qual lutamos é para esta humanidade, da qual somos parte. Temos de ganhar para o socialismo as mulheres e os homens com os quais convivemos e não os seus descendentes.

 

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