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Lula, PT e os Movimentos Sociais
Emir Sader

Uma das características distintivas do Partido dos Trabalhadores do Brasil é sua origem diretamente em movimentos sociais. Surgido na passagem da ditadura militar (1964-1985) para a democracia, o PT surgiu simultaneamente e no mesmo movimento histórico de resistência à ditadura que a primeira central sindical da história do país – a Central Única dos Trabalhadores – e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), além de outras expressões das mobilizações sociais, como o movimento de mulheres, de povos indígenas, os movimentos ecológicos e a extensão da sindicalização no campo e no setor público.

Quando seu principal dirigente, Luis Inácio Lula da Silva, foi eleito presidente do Brasil, na sua quarta tentativa, gerou muita expectativa o tipo de relação que seu governo teria com os movimentos sociais. Já nos primeiros No entanto, já nos primeiros meses na presidência, Lula teve que ver manifestações de movimentos populares contra iniciativas de seu governo, estabelecendo-se a partir daí, em vários planos, relações difíceis e conflitivas entre os movimentos sociais e o governo nacional do PT.

Ao descontentamento com a nomeação de uma equipe econômica de corte claramente liberal – que não incluía praticamente nenhum economista do PT, nem de outros setores de esquerda, mas que provinha dos grupos liberais que haviam trabalhado em governos anteriores -, anunciando que se manteria e se aumentaria o ajuste fiscal herdado do governo de Cardoso, se somou a primeira grande iniciativa do novo governo – a reforma da previdência e a reforma tributária.

E Lula chega à metade do seu mandato sem poder contar com o apoio ativo dos movimentos sociais, com alguns deles – mais radicais - se alinhando em oposição aberta ao governo, outros – como o MST, com uma posição crítica, mas de diálogo, de “pau e prosa”, como definida por seu mais conhecido dirigente, João Pedro Stédile – e outros mais – como a Central Única dos Trabalhadores, a CUT -, criticando a política econômica do governo, embora com um apoio - cada vez mais tímido - a Lula.

O que aconteceu com Lula, com o PT e com os movimentos sociais, para que isso acontecesse?

Reformas ou contra-reformas?

Demonstrando, desde os seus primeiros dias, que a manutenção da política econômica herdada de FHC não representava apenas uma precaução inicial para evitar desequilíbrios na passagem de um governo para o outro, Lula anunciou como prioridade do seu primeiro ano de governo a realização de reformas previdenciária e tributária. A primeira delas tinha um significado especial para a linha do governo e para os movimentos sociais.

A reforma da previdência tornou-se uma das peças de resistência do projeto neoliberal. Por um lado, pelo diagnóstico de que o déficit previdenciário seria uma das causas essenciais do déficit público, fazendo recair sobre as aposentadorias dos funcionários do setor público responsabilidades fundamentais em um tema que o neoliberalismo conseguiu propor como estratégico, para supostamente sanear as finanças públicas, colocando-a em condições de voltar a impulsionar o desenvolvimento e as políticas sociais. A desclassificação da resistência dos sindicatos dos funcionários públicos como defesa de “privilégios”, negados ao setor privado, leva a enfrentamentos diretos desses sindicatos com o governo, enquanto este tenta jogar a opinião pública contra eles.

O PT havia estado do lado dos sindicatos dos trabalhadores do setor público ao longo de toda a década anterior – nos governos de Collor de Mello e de FHC. De repente, Lula afirma que se dispõe a “realizar as reformas que o governo FHC não teve coragem para realizar”. Isto é, aquilo que até a pouco o PT havia caracterizado como “contra-reformas” neoliberais, passaram a ser assumidas positivamente pelo governo de Lula. Essa mudança, por si só, permite medir as transformações por que o passou o PT nos anos anteriores e especialmente a partir do momento em que chegou ao governo federal. Um elemento ideológico significativo, no começo do mandato de Lula, foi sua ida ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre e, em seguida, ao Fórum Econômico de Davos, o que contrariou os movimentos sociais, que consideram incompatível qualquer forma de mediação entre os dois Foros, considerados contraditórios.

Naquele momento as viagens foram projetadas como uma atitude de comparecer em todos os espaços possíveis para levar adiante o que seria a prioridade de Lula, como presidente e como líder internacional – o combate à fome. No entanto, as definições posteriores foram demonstrando como nenhuma das propostas do Fórum Social Mundial foram incorporadas pelo governo Lula – nem as referentes à regulamentação do capital financeiro, nem à suspensão do pagamento da dívida, nem em relação ao meio ambiente, ao combate aos transgênicos ou a qualquer outra proposta originada em Porto Alegre. Enquanto que a política econômica do governo foi sendo elogiada pelos organismos multilaterais – do FMI ao Banco Mundial -, revelando que as opções de Lula estavam mais próximas da estação de inverno suíça do que da capital gaúcha.

Origens da distância atual

O divórcio entre o PT – seu governo, o de Lula – e os movimentos sociais foi um processo e não corresponde a um ato brusco, embora a chegada ao governo tenha acelerado tendências que iam se cristalizando ao longo dos anos anteriores. Em um primeiro momento de sua história o PT pretendeu ser o partido dos movimentos sociais, sua expressão no plano político. Sem ter os vínculos orgânicos que o Partido Trabalhista da Grã Bretanha possui com o movimento sindical daquele país, o PT sempre teve na Central Única dos Trabalhadores sua expressão no plano sindical, da mesma forma que a Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra encontrava no PT seu interlocutor político privilegiado. Conforme foi assumindo funções de governo, primeiro a nível municipal, depois a nível estadual, e conforme foi estabelecendo políticas de aliança partidária, conforme foi desenvolvendo seu trabalho parlamentar, o PT foi desenvolvendo uma atividade propriamente partidária, no plano político e institucional. Sua estratégia e tática foi ganhando autonomia, decidida nas instâncias de direção do partido, em função dos espaços institucionais que foi ocupando.

Um marco significativo foram as eleições presidenciais de 1994, quando Lula iniciou como franco favorito mas, diante do surgimento da candidatura de Fernando Henrique Cardoso e seu plano de estabilização monetária, foi derrotado. A partir daquele momento o PT iniciou um processo de busca de governabilidade, que foi se traduzindo em modificações na sua plataforma, como ficou patente no caso da dívida externa, diante da qual inicialmente o partido pregava a suspensão do pagamento da dívida, para passar posteriormente à reivindicação de sua renegociação, para finalmente, já durante a campanha eleitoral de 2002, afirmar que não romperia nenhum compromisso – incluindo o do pagamento da dívida, como vem fazendo nestes dois primeiros anos de governo. As relações com a CUT sempre foram muito próximas, mas com o MST a direção do PT demonstrava crescente incômodo diante das ocupações dos trabalhadores do campo de terras improdutivas e de locais do governo para pressionar por financiamentos para seus assentamentos. A direção do PT atuava como se se tratasse de um primo mal comportado, do qual não podia negar os laços de parentesco, mas diante de quem fazia questão de manifestar suas divergências sobre seu comportamento. Ia ficando claro que a direção do PT passava a falar para

o sistema, para as elites, como se estivesse completamente atado à institucionalidade, no marco do qual se comprometia a atuar e em nome da qual condenava ações e declarações do MST. Nas eleições presidenciais de 1998, buscando evitar a identificação do PT e de Lula com situações catastróficas, a campanha não revelou o que era uma realidade óbvia – a economia brasileira estava falida e um novo acordo com o FMI estava sendo negociado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso – como efetivamente ocorreu, com a negociação sendo realizada ainda durante a campanha eleitoral e uma dura desvalorização sendo feita três meses depois. O PT buscava dissociar a Lula de imagens que poderiam aparecer como ligadas a risco e a incertezas.

Ainda assim, as posições de Lula no início da campanha eleitoral ativavam aos movimentos sociais, seja suas afirmações de que “não valeria a pena ganhar, se não fosse para começar a sair, no primeiro dia de governo, da política de Pedro Malan” (ministro de economia de Cardoso), assim como seu objetivo de promover a “prioridade do social”, fazer a reforma agrária e retomar o desenvolvimento com distribuição de renda. Foi a partir da escolha da sua equipe econômica que os sinais de distanciamento dos movimentos sociais com o governo passaram a se fazer sentir de forma mais clara.

Se bem que Lula havia assinado durante a campanha eleitoral um documento de compromisso – chamado “Carta aos brasileiros” - de que não romperia nenhum compromisso, numa tentativa de frear a grande fuga de capitais em andamento, em resposta à possibilidade de que se tornasse vitorioso – a ponto de que o “risco Brasil” passou a ser chamado “risco Lula” -, não se imaginava que ele pudesse governar com as mãos tão atadas como anunciava naquele documento. A nomeação de Antonio Palocci – um ex-prefeito de uma cidade muito rica do interior de São Paulo, Ribeirão Preto – como seu ministro de economia era a decorrência direta do papel de coordenador da campanha eleitoral – depois que um outro prefeito, primeiro coordenador da campanha, tivesse sido assassinado – que ele tinha assumido.

Porém, a luz amarela foi acesa quando Lula chamou a um ex-presidente do Banco de Boston, filiado ao partido de Cardoso, Henrique Meirelles, para ser presidente do Banco Central. Foi concomitante ao anúncio que se manteria a mesma política econômica do governo anterior. Este anúncio foi recebido negativamente pelos movimentos sociais, mas o governo dava sinais contraditórios. Por um lado dizia que essa continuidade se devia à “herança maldita” que recebia do governo anterior, Palocci – um médio de profissão – dizia que “não se troca de médico em meio à doença”, Lula afirmava que não poderia revelar o real estado em que se recebia o país, para não suscitar ainda mais incertezas. Afirmava-se que se trataria de um plano de transição, que incluiria a aprovação das reformas previdenciária e tributária, para conquistar a “confiança do mercado”, a partir do que começariam a baixar as taxas de juros – elevadas na primeira reunião da comissão do Banco Central encarregada – e se retomaria o desenvolvimento.

Aos poucos a tônica mudou e o próprio Palocci passou a dizer que se colocava em prática um superávit fiscal superior ao que solicitado pelo FMI e que se tratava de uma política permanente do governo, que ele mesmo, se pudesse, manteria esse superávit por dez anos, ao mesmo tempo em que se encontrava com Cardoso e revelava que se tratava efetivamente da continuidade da política econômica do governo anterior.

O marco mais decisivo para a mudança de atitude dos movimentos sociais em relação ao governo Lula foi a proposta do governo de reforma da previdência social. O modelo da proposta se enquadra perfeitamente na segunda geração de reformas do Banco Mundial. Recorta direitos adquiridos, fazendo com que os aposentados voltem a pagar imposto, limita os níveis de aposentadoria dos trabalhadores do setor público e abre espaço importante de desenvolvimento dos fundos privados de pensão – um filé mignon para o sistema financeiro.

Em oposição ao projeto realizaram-se as maiores manifestações desde o começo do governo Lula, contando com a participação dos sindicatos dos trabalhadores do setor público, o apoio do MST, da CUT, do movimento estudantil e de parlamentares do PT e de outros partidos de esquerda. Desenhava-se a adesão ideológica e política do governo ao ideário liberal, acoplando reformas dessa plataforma à sua política econômica. A expulsão de parlamentares pela direção do PT – três deputados e uma senadora – aparecia como mostra da disposição do partido de punir os que não obedecessem as novas orientações, mesmo se estas não tivessem sido adotadas em congresso ou conferencia nacional do PT.

O episódio revelava a opção por soluções de mercado contra o setor público por parte do novo governo. Lula definiu a reforma da previdência como “a ação mais importante do seu governo no primeiro ano”, dando a significação que atribuía a mudança de posição do PT sobre um tema tão significativo no ideário neoliberal. E demonstrava para as elites como o governo Lula estava disposto a cortar na carta, atuando contra os sindicatos do setor público, até ali um setor que apoiava maciçamente ao PT, assim como disposto a expulsar parlamentares, demonstrando a profundidade da adesão do governo ao programa liberal.

Uma terceira via tropical?

A continuidade da política econômico-financeira do governo de Cardoso se combinava com políticas sociais compensatórias, localizadas, emergências – aqui também conforme o receituário do Banco Mundial. O programa “fome zero” e os que o sucederam não se orientavam pela afirmação de políticas centradas em direitos universais, mas se centravam em zonas e cidades consideradas de “extrema pobreza”. Não poderia haver melhor exemplo de política focalizada, que escolhe pontos determinados para concentrar ajuda econômica, mediante a utilização de cartões de identificação das famílias mais carentes. Combinavam-se assim os dois elementos que de alguma forma haviam caracterizado a chamada “terceira via” – a manutenção da estabilidade monetária como objetivo central e o desenvolvimento de políticas sociais compensatórias, ao mesmo tempo que se ataca conquistas do Estado de bem estar social. O objetivo é o de “criar um clima propício à atração de investimentos” e de eliminar tudo que pareça entrave a essa atração. Os movimentos sociais tem que se contentar com os efeitos das políticas de incentivo ao grande capital.

No caso brasileiro, a dualidade, o enfrentamento entre os Ministérios de Desenvolvimento Agrário e o da Agricultura, reflete as contradições em que se move o caminho trilhado pelo governo Lula, entre o grande empresariado e os movimentos sociais. O Ministro da Agricultura prega abertamente a adoção dos transgênicos, na forma como são disseminados pela Monsanto, especialmente nas plantações de soja do sul do país, enquanto o MST luta duramente contra os transgênicos – fiel às teses da Via Campesina e dos Foros Sociais Mundiais. Da mesma forma, o Ministro da Indústria – ele mesmo grande empresário exportador de frangos – representa o modelo do agro negócio, voltado para o mercado externo, enquanto o MST prega que o eixo do desenvolvimento agrário devem ser as pequenas e médias propriedades, que produzem para o mercado interno.

No momento em que o governo teve que definir o reajuste do salário mínimo, se explicitou igualmente a oposição entre a política econômico-financeira e os interesses dos movimentos sociais. Foi o Banco Central – cuja equipe é doutrinariamente liberal, originária do governo anterior – que definiu o nível irrisório de aumento do salário mínimo, diante da oposição da Central Única dos Trabalhadores e de todos os sindicatos do país. Pelo caráter simbólico que possui, Lula sentiu mais profundamente que outros episódios a decisão rígida da equipe econômica, mas deixou que ela se impusesse. Esse aumento ajudou a compreender como a expansão econômica prevista para 2004 seguiria baseando-se na exportação e no consumo das elites, porque não havia recuperação da capacidade de consumo do mercado interno, especialmente da massa de trabalhadores. Depois de dois anos de estagnação, o nível de crescimento previsto – em torno de 3,5 ou 4% - representa uma débil recuperação, sem significar a recuperação do nível de emprego, menos ainda do poder aquisitivo dos salários.

O governo Lula dispõe assim do apoio das elites empresariais, mais firmemente do capital financeiro e sua política econômica goza da simpatia da grande mídia. Ele ainda pode contar com a solidariedade dos setores populares desorganizados, que seguem projetando nele a esperança de resgate de seus problemas ou então simplesmente se identificam com ele por sentir nele um deles, que conseguiu ascender no meio das elites.

As eleições municipais de outubro/novembro de 2004, ao invés de representarem um grande avanço do PT que, depois de quatro tentativas, finalmente conseguia eleger a Lula presidente da república, produziram a primeira regressão eleitoral do partido, desde sua primeira participação eleitoral. Embora tenha aumentado o número de votos no conjunto do país, geográfica e socialmente o PT deslocou sua presença de centros políticos fundamentais em que havia estado governando – em alguns casos, como Porto Alegre, a 16 anos – ou São Paulo – o terceiro orçamento do país -, para regiões do interior do país, com menor peso político e mais baixo grau de politização – como a região central do Brasil.

O principal elemento ausente nas campanhas eleitorais do PT em 2004 – como conseqüência direta da decepção com os rumos do governo Lula – foi a ausência da militância nas ruas. É como se o PT tivesse perdido sua alma, tentando substitui-la pela “profisisonalização”, isto é, especialistas em marketing orientando as campanhas – centradas muito mais na televisão do que nas ruas – e com pessoal contratado para desenvolver a campanha no lugar da militância. De tal forma que os candidatos do PT costumavam melhorar seu desempenho nos últimos dias, quando o esforço concentrado da militância pesava favoravelmente a seus candidatos. Desta vez não apenas não se deu esse fenômeno como, ao contrário, os resultados finais foram em geral mais desfavoráveis aos candidatos do PT do que apontavam as pesquisas.

Em seguida aos resultados eleitorais negativos, o governo Lula passou a buscar recompor sua base de alianças políticas com partidos de centro – PMDB – e de direita – PP -, já com vistas as eleições presidenciais de 2006. Os movimentos sociais, por sua vez, retomaram suas mobilizações, seja as ocupações dos trabalhadores sem terra – que haviam dado uma trégua durante a campanha eleitoral -, seja os estudantes e professores contra a reforma universitária, considerava privatizante -, seja contra a reforma laboral – que anuncia um enfraquecimento dos sindicatos e um avanço na precarização laboral. Em novembro voltaram a se concentrar em Brasília mobilizações do MST, das entidades dos professores e dos sindicatos, em oposição ao novo ciclo de reformas anunciada pelo governo, confirmando a distanciamento cada vez maior dos movimentos sociais em relação ao governo Lula.

Ao manter a política econômico neoliberal herdada do governo de Cardoso, Lula inviabiliza a prometida “prioridade do social”, responsável pela perda de apoio social do seu governo. A experiência de governo do PT e de Lula, que parecia apontar para a confluência entre governo popular, partido de esquerda e movimentos sociais, ao longo de dois anos, desemboca assim em um encontro fracassado.

Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira. www.outrobrasil.net

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